Rua, arte e dignidade

Biblioteca e museus abrem as portas para a população em situação de rua


Por Lucas Simões

Foto: Lucas Simões

Anderson*, 46, é uma das 4.553 pessoas que vivem em situação de rua em Belo Horizonte (levantamento da Prefeitura, divulgado na última quinta-feira, 08/06). Para ele, absurdos fazem parte de seu cotidiano nas quase duas décadas em que aprendeu a contragosto a ressignificar o conceito de casa. “Já vi e fiz muita coisa na vida. Até no Pará eu trabalhei caçando ouro. Eu posso contar nos dedos as vezes que alguém me olhou no olho ou perguntou o que eu queria da vida. Se importou, eu quero dizer. Se você mora na rua, eles te condenam como se você fosse absurdo, não importa o que você faça. Entende?”, diz com uma sobriedade dura.

Anderson e outras 15 pessoas atendidas no Centro de Referência da População em Situação de Rua (Centro POP) visitaram na manhã desta segunda-feira (12/06) uma exposição de arte, a maior parte pela primeira vez na vida. Foi com um misto de espanto e empatia que ele entrou na Biblioteca Pública Estadual, na pomposa Praça da Liberdade, reparando o nome da exposição que homenageia os 100 anos do escritor Murilo Rubião: “Absurdus”.

Foto: Lucas Simões

“Absurdo é um negócio que a gente conhece bem. Essa é nossa palavra de ordem na rua… Ei, cara, olha essas máquinas de escrever. É para a gente escrever nelas? Que louco”, e ele muda logo o rumo da conversa, ao reparar a coleção de Olivettis e Hermes Babys dispostas com escritos de Murilo Rubião incompletos, convidando qualquer um a preencher os papéis com sua imaginação. Um segundo e Anderson está em frente a uma das máquinas, caçando, além de letras no teclado, uma expressão própria que não seja ignorada ou apagada.

A ação do Centro POP faz parte do esforço do poder público municipal de abrir o leque de apoio para pessoas sem moradia na cidade. Os dois Centros POP de Belo Horizonte, um na Floresta e outro no Barro Preto, têm cadastrados cerca de 500 cidadãos, um número flutuante já que os atendidos precisam renovar carteiras de identificação mensalmente para ter acesso aos serviços ofertados pela Prefeitura. Com o cadastro em dia, eles têm direito a café da manhã, lanche da tarde, banho, além de poder lavar as roupas e contar com assistência social e psicológica. Tudo estipulado em horários pré-definidos, entre 8h e 17h. Recentemente, os centros também passaram a abrir aos finais de semana, em uma ação emergencial iniciada na gestão do prefeito Alexandre Kalil (PHS), até que a Secretaria Municipal de Assistência Social faça um diagnóstico e um plano de ação para suprir as necessidades de atendimento, análise prevista para ser entregue no início do segundo semestre.

Foto: Lucas Simões

“O atendimento é um esforço para ajudar na sociabilização, na existência mesmo. Mas temos uma diversidade enorme de público nos Centros POP. Muitos analfabetos, outros semi-letrados, jovens, idosos. Vários manifestam vontade de ter acesso a equipamentos culturais, de viver a cidade e absorver cultura e conhecimento. Só que não estão inseridos nesse contexto e, por falta de oportunidade, acabam passando o dia no Centro POP. Alguns procuram emprego, outros ficam ociosos mesmo. É preciso inseri-los nessa sociedade a qual eles têm direito”, diz a psicóloga Lídia Ramos, do Centro POP. 

Carlos Alexandre Madalena, museólogo da UFMG, explica que a mostra “Absurdus: 100 anos de Murilo Rubião” foi concebida justamente para contemplar a visitação não só das convencionais crianças e adolescentes de escolas, mas também de uma população invisibilizada. No espaço de 40m², estão mais do que frases célebres da literatura fantástica e surrealista de Rubião. “Nós tínhamos o conhecimento, por exemplo, que nem todos que vão visitar a exposição são alfabetizados. Então, ao invés de excluí-los por isso, incluímos trazendo a obra do Rubião em quadrinhos, vídeos, áudios e uma interatividade grande. Ao contrário de museus, onde normalmente as pessoas são convidadas a admirar obras sem tocar em nada, aqui convidamos as pessoas a escrever nas máquinas, a produzir obras também, a levar um conto desenhado do escritor para casa, a assistir uma história visual que fale sobre absurdos, a tocar em objetos e a produzir conhecimento também, e não só assimilá-los”, diz Alexandre.

Foto: Lucas Simões

A visita à biblioteca foi uma demanda dos próprios frequentadores dos Centros POP. Todos eles estão matriculados no programa de Educação Para Jovens e Adultos (EJA) da Prefeitura e pretendem fazer desta experiência apenas a primeira. “A escola e as aulas me fizeram ter vontade de conhecer mais o mundo. A gente, na rua, é ignorante para o povo. Não foi só para conseguir um emprego, não, que eu quero muito. É que eu acho que a gente precisa conhecer as coisas, é uma necessidade igual a comer e a tomar banho. Tem que ter isso sempre”, diz Ana*, 32, que voltou a estudar há um ano para conseguir um emprego e, como ela diz, “alugar minha casinha”.

A ideia do Centro POP é intensificar as chamadas ‘ações extra’, elaboradas além dos serviços convencionais ofertados pela Prefeitura. Na semana que vem, outra turma do centro irá visitar os equipamentos do Circuito Cultural da Praça da Liberdade, como a Casa Fiat de Cultura e o Arquivo Público Mineiro. Além disso, a ideia é criar oficinas temáticas no Centro-Pop para além de atividades como artesanato e cinema, já oferecidas. “Recentemente, começamos a trabalhar com grupos focados em elaborar currículos, discussão de mulheres, de futebol… e agora iremos fazer a oficina de leitura de textos. Todas as atividades surgem pela demanda das pessoas cadastradas. É uma forma de entender suas necessidades e particularidades”, afirma a psicóloga Lídia Ramos.

*Ambos os personagens em situação de rua citados na matéria foram identificados com nomes fictícios, a pedido dos próprios entrevistados.