Viramos cordeiros silenciosos
Por José Antônio Bicalho

Foto: Lula Marques/Agência PT
Dívida não é pecado, pelo contrário. Não existe governo ou grande empresa que não tenha dívidas. Tomar crédito é saudável tanto para governos quanto para a iniciativa privada. O problema está quando o crescimento da dívida foge ao controle ou a geração de caixa cai abruptamente e o tomador de crédito passa a ter dificuldades para honrar seus compromissos. Daí a importância de uma boa gestão financeira, tanto no setor público quanto no privado, que mantenha o equilíbrio entre geração de caixa, estoque de dívida, nível de juros e cronograma de vencimentos.
Não acredite nas campanhas de demonização da dívida pública patrocinadas pela grande mídia. As comparações entre contas públicas e economia doméstica, feitas recorrentemente pelos jornais para convercer os leitores de que o governo não pode gastar menos do que arrecada, não fazem qualquer sentido. Contas públicas e domésticas são coisas absolutamente diferentes em essência e princípio. Um assalariado, logicamente, não pode gastar mais do que ganha, sob o risco da inadimplência. Já governos (e também empresas) não ganham salários fixos. O endividamento, quando feito com inteligência, é importante instrumento para turbinar a arrecadação (ou o faturamento) e, de resto, garantir capacidade futura de caixa para honrar compromissos (pagamento de juros e amortizações do estoque) e ainda permitir a tomada de novos créditos.
Bem mais plausível é a comparação entre contas públicas e das empresas. Embora os mecanismos de controle de dívida sejam diferentes entre elas, existem similaridades de gestão e de objetivos que permitem comparações menos falaciosas do que aquela feita pelos jornais com a economia doméstica.
Vejam bem: se uma empresa de capital aberto zerar seu estoque de dívida, a diretoria executiva será duramente cobrada pelos acionistas por irresponsabilidade administrativa. Isso porque é fazendo dívida que se consegue turbinar os investimentos e elevar a projeção de crescimento. Sem crédito, uma empresa perde velocidade, suas ações não valorizam e corre-se o risco de ser engolida pela concorrência.
É claro que é possível crescer organicamente, unicamente pela inversão dos lucros. Boa parte das pequenas e médias empresas, e até algumas grandes de capital familiar, lançam mão dessa estratégia conservadora, e batem no peito orgulhosas de não recorrerem nunca ao crédito dos bancos. Mas isso é fruto da deturpação do mercado brasileiro de crédito, com seus cinco bancos monopolistas e seus juros escorchantes. Para as pequenas, melhor nem pensar em financiamento bancário. Mas, para as grandes, com capacidade de negociação dos juros e acesso a canais alternativos de liquidez, não recorrer ao crédito é miopia.
A dupla suicída
Assim também é com o governo. A tomada de crédito e a rolagem da dívida são parte natural da gestão das contas públicas. E é saudável, desde que o crédito seja direcionado para dinamizar a economia e fazê-la crescer. A coisa toda acontece da seguinte forma: o governo lança novos títulos da dívida e toma crédito no mercado, para pagamento em longo prazo. Investe o dinheiro em infraestrutura e na dinamização das grandes cadeias produtivas. Com isso, faz a economia crescer e, consequentemente, aumenta a arrecadação de impostos, o que lhe proporciona capacidade de pagamento da dívida contraída e ainda gera alguma sobra. É o tal do círculo virtuoso de crescimento, no qual o governo e a dívida são as molas propulsoras.
Mas, existe também a gestão suicída da dívida pública, que acontece quando o dinheiro novo do crédito é usado unicamente para tapar o déficit das contas correntes. Nesses casos, o aumento da dívida se dá sem investimentos. Inexistindo a mola propulsora do governo na economia, a perspectiva passa a ser estagnação continuada. Sem aumento da arrecadação e com a dívida se avolumando, é inevitável a chegada do momento em que o governo não conseguirá mais honrar seus compromissos. Então, com a quebra de confiança, investidores passam a fugir dos novos títulos públicos lançados e o governo vai à bancarrota.
Pois, os gestores da dívida brasileira neste governo Temer – Henrique Meirelles (Fazenda) e Ilan Goldfajn (Banco Central) – são dois suicídas que levarão o país à falência se não forem contidos a tempo. Nas mãos desses dois, vivemos o pior dos mundos. A dívida explode, a arrecadação cai vertiginosamente e, muito em breve, o governo começará a ter problemas para rolar a dívida, sendo obrigado a emitir papéis de prazo cada vez mais curto e com juros mais altos. E tudo isso por conta da grande mentira do ajuste fiscal que Temer nos enfiou goela abaixo.
Números
Querem números? Pois vamos a eles, tomando o último relatório mensal da dívida pública, relativo a julho. E vamos compará-lo ao de um ano antes, ao relatório de julho de 2016, o último completado por Dilma Rousseff na Presidência da República. Nesses 12 meses, vamos checar o quanto a dívida se deteriorou. Faço essa comparação propositalmente, já que Dilma foi derrubada por motivos políticos, mas sob forte críticas aos “desacertos” econômicos de seu governo.
No último mês da gestão Dilma, o estoque da dívida pública federal bateu em R$ 2,956 trilhões. Depois de um ano de gestão Temer, essa dívida saltou para R$ 3,341 trilhões. O crescimento é de inacreditáveis 13% em apenas doze meses. Não acha tão assustador assim? Pois entenda que o crescimento da dívida precisa ser acompanhado por um crescimento ainda maior do Produto Interno Bruto para que ela não saia do controle. Se considerarmos que o PIB acumulado em 12 meses até junho apresentou queda de 1,4%, temos aí uma bomba relógio ativada.
Mas, vamos contrapor este crescimento da dívida à nossa capacidade de pagamento, que está umbilicalmente ligada ao tamanho da nossa economia. Naquele último mês de gestão Dilma, o estoque da dívida passou a representar 67,1% do PIB, o que já era uma enormidade. Sim, queridos, as contas do governo naqueles extertores do governo Dilma já estavam absolutamente fora de controle e o déficit do setor público acumulado em 12 meses batia a casa dos R$ 154 bilhões, o equivalente 2,54% do PIB.
Mas vale ressaltar que o governo estava em frangalhos, acossado politicamente por todos os lados, às vésperas do impeachment e há um ano com a economia sob a gestão do ultraortodoxo Joaquim Levy, que substituiu Mantega no Ministério da Fazenda numa tentativa de acalmar os mercados, o que foi o maior erro político/econômico cometido por Dilma.
Mas, passado um ano do afastamento da presidenta, o que vemos? Que a relação estoque da dívida e PIB cresceu ainda mais, para insustentáveis 73,8% do PIB em julho, um pulo de 6,7 pontos percentuais. E, o pior, sem perspectiva de reversão dessa tendência de crescimento, já que o rombo das contas públicas aumentou. Apesar do ajuste fiscal, que nos foi vendido como a redenção das finanças públicas, o déficit acumulado nos 12 meses de governo Temer até julho foi de R$ 183,7 bilhões, ou seja, quase R$ 30 bilhões a mais do que o apurado nos últimos 12 meses de governo Dilma.
Pelo andar da carruagem, pela deterioração de todos os indicadores econômicos, pela absoluta falta de perspectiva de crescimento consistente, pela explosão da dívida e do déficit público, a conclusão inequívoca é a de que caminhamos a passos largos para o default. Não acontecerá assim tão rapidamente, para sorte de Temer. Mas serão ele, Meirelles e Goldfajn os responsáveis pela inviabilização e pela infinita crise que ameaça se abater no país assim que o próximo presidente tomar posse. E já que o “Fora Temer” parece ter se calado em definitivo, caminhamos todos como cordeiros silenciosos para o abatedouro.
Economia
José Antônio Bicalho
Jornalista especializado em economia e editor de O Beltrano