Sonho americano (parte quatro)

A série sobre imigrantes ilegais nos Estados Unidos traz, hoje, a história de Zilene Lima, a amazonense que não pode retornar para rever seu pai doente


Clarissa Carvalhaes

Correspondente em Nova York

Arquivo Pessoal

Nascida em uma família de seringueiros, Zilene Lima vive há 20 anos nos Estados Unidos. Veio tentar a sorte que havia perdido no Brasil, quando a pizzaria da qual era proprietária, em Manaus, passou a lhe dar mais prejuízo do que lucro. Vendeu tudo e apostou cada centavo no risco de recomeçar. Enquanto tantos ‘nãos’ eram dados pelo consulado americano, Zilene foi exceção à regra. O consentimento para entrar legalmente nos EUA soou, para ela, como um sinal de que estava tomando o caminho certo.

“Quando eu digo que sou do Amazonas, as pessoas fazem cara de espanto. Sou uma estranha nesse ninho de mineiros e paranaenses”, brinca ela. “Se elas se espantam quando digo que sou do Amazonas, imagine quando digo que venho do interior do interior. De uma cidadezinha chamada Pauini. Isso mesmo, Pauini, um desses lugares pequenininhos, bem a cara do Brasil, com menos de 20 mil habitantes e onde todo mundo se conhece”.

Gravidez de risco

O sonho de Zilene era ter um filho. Quando engravidou, aos 38 anos, já nos Estados Unidos, a amazonense viveu dias de alegria e medo. A gravidez de risco acabou fazendo com que o menino John, hoje com 12 anos, nascesse precocemente, aos seis meses.

“O médico disse ao meu marido que ele precisaria escolher entre nosso filho ou eu. Ele disse: ‘Eu quero os dois; vá lá e me traga os dois’”.

Depois do parto, John ficou três meses no hospital. Só pode ir para casa depois que Zilene e o marido fizeram curso de cuidadores e sessões de atendimento com assistentes sociais. “Quando vejo meu filho saudável, lembro dos dias de medo e insônia que vivemos. Do quão próximo da morte nós dois estivemos e do quanto sou grata a esse país. A conta do hospital fechou em US$ 150 mil. Não pagamos porque provamos que não tínhamos condições. Eu acho que se o John tivesse nascido no Brasil, não teria sobrevivido. Se ele tivesse nascido como eu, no meio do seringal, com certeza nem ele, nem eu, estaríamos aqui pra contar essa história”.

Decepção

Evidentemente, nem tudo são flores no país de Trump. Hoje, Zilene tem inglês fluente, mas conta que por muitas vezes recebeu tratamento preconceituoso porque não falava o idioma. “Isso é muito triste, porque a gente fica se sentindo um nada, sabe? É humilhante, porque muitas vezes nos deparamos com gente que faz questão de maltratar o imigrante. Mas já passei da idade de me importar com isso. Eu não ligo mais. Ergo a cabeça e sigo em frente”.

Zilene também se surpreendeu com a desunião da comunidade brasileira. Por opção, a maior parte dos amigos de Zilene e de seu marido não é formada por brasileiros. “Eu vim de Manaus que é uma cidade festeira, de povo acolhedor. Aqui, o que vejo (na comunidade brasileira) é um querendo tirar vantagem sobre o outro. Muitos se vendem e se perdem por causa do dólar. Saem atropelando o outro e, se tiver oportunidade, tomam seu trabalho. Claro que existem exceções, mas, infelizmente, são poucas”, diz.

“Quando cheguei, não falava nada de inglês, assim como a maioria dos que vem pra cá. Então, a gente passa a depender dos outros. No início, as pessoas te ajudam, mas te largam no meio do caminho. Elas passam a disputar com você por trabalho, por tudo. Quando a gente percebe, perdeu aquele afeto brasileiro. Nos tornamos pessoas frias, porque esse país é assim. É uma maneira inconsciente de sobrevivermos aqui, de lidarmos com a saudade do nosso país, das pessoas, da família, dos amigos. Enfim, de tudo que amamos e deixamos para trás”.

Saudades

Desde que se mudou, Zilene não voltou ao Brasil. A esperança é a de que John, aos 21 anos, consiga dar aos pais o tão desejado Greend Card. “Eu gostaria de viver minha velhice no Brasil. Morro de saudades, de vontade de voltar, mas não posso. O que me consola é que muitos da minha família já vieram aqui. Meu irmão, meus primos, mas meu pai eu nunca mais abracei. Ele tem pavor de avião, já disse que não vem e agora está doente. Isso parte meu coração. Eu não posso sequer ir vê-lo, porque sei que não conseguirei voltar para cuidar do meu filho”.

Aos domingos, a saudade aperta mais. Nesses dias, Zilene almoçava na casa do pai. Era lá que todos os irmãos, primos e tios se reuniam. “De noitinha, íamos a igreja e, quando voltávamos, íamos pra casa da minha avó tomar sopa. Era uma alegria, uma bagunça. Minha família é meio doida, mas a gente era muito unido. Aqui, minha vida é completamente diferente, isso não existe mais”, lamenta.

Zilene diz que leva um pouco Brasil todos os dias para dentro de casa. Faz cuscuz, arroz e feijão. Volta e meia, conta para o filho as histórias do seringal onde nasceu, da pequena Pauini e de seus vizinhos solícitos e presentes, da família gigantesca que almoçava e jantava junta todos os domingos.

“Eu nasci no meio do nada com coisa nenhuma. Minha mãe precisou pegar uma canoa para ir até ao cartório me registrar. Fui batizada e crismada no mesmo dia, porque só Deus saberia quando o padre iria voltar. Quando saí de Pauini, só existiam duas ruas: uma pra subir e outra pra descer. De repente, aqui estou eu. Quando fui a Nova York, à Broadway, e assisti ‘Aida’, com Elton John, não acreditei. Eu chorava baixinho e pensava: ‘meu Deus, eu vim da selva, de canoa, do Amazonas.’ Bem, o que mais posso te dizer? Deus me abriu as portas. Ele é bom, viu?”