A derrapada de Mario Vargas Llosa


Por André Nigri

 

Mario Vargas Llosa tem uma conhecida frase sobre a arte do romance: “Quando o romance está começando quase sempre ninguém, nem o próprio romancista, pode escutar com facilidade esse coração autobiográfico que bate fatalmente em toda ficção.”

Sim. Ao evocar suas lembranças e criar personagens em conflitos, o autor será tanto mais bem-sucedido quanto mais desaparecer por trás de sua história. Faulkner, Flaubert, Kundera certamente assinariam o manifesto de seu colega peruano.

Mas tal tarefa é um risco permanente. Porque quem escreve não apenas cria histórias imaginadas como se vê tentado a expressar suas opiniões sobre política, moral, sociedade, costumes, estética, economia. É claro que um escritor não é obrigado a furtar-se de espalhar pontos de vista pela história. Se assim fosse, Guerra e Paz, Os Sonâmbulos, A Montanha Mágica e muitos outros romances talvez jamais seriam escritos. Mas esses são formulados pelos personagens e entram em choque contra opiniões opostas de outros personagens. E mesmo um personagem, como qualquer um de nós, muda de opinião ao longo da história. De modo que o leitor fecha o livro e não sabe o que o autor pensa a respeito, por exemplo, de um determinado político, se acredita ou não em Deus, se condena ou não os costumes e por aí vai.

Em Cinco Esquinas, publicado em 2016, Vargas Llosa cometeu um dos mais graves erros de um romancista. Ele ilustrou ficcionalmente suas ideias. Além disso, e não menos danoso, emprestou seu prestígio para desafogar seu imorredouro ressentimento contra Alberto Fujimori, o político peruano que dirigiu seu país durante a década de 90 depois de ganhar a disputa eleitoral contra Vargas Llosa em 1990.

Como não alforriou seus personagens, eles aparecem como caricaturas grosseiras em uma trama juncada de maniqueísmos.

De um lado, há dois casais da elite limenha. Os casais são amigos, os homens ganham dinheiro, honestamente faz questão de sublinhar o autor, geram empregos em um Peru atolado na corrupção e assolado pelas ações armadas de grupos terroristas, enquanto suas mulheres levam uma vida de madame, com fins de semana para compras em Miami e idas à academia e a caros salões de beleza.

No início do romance, as duas se veem forçadas a passar uma noite juntas por causa do toque de recolher imposto pelo governo. Na cama, fazem amor. Nenhuma delas fez isso antes. Mas logo, vê-se que aquilo para elas foi apenas uma prazerosa diversão que não arranhará seus sólidos casamentos, portanto, não há motivos para interromper seus encontros.

De outro lado, aparece o dono de uma revista popular de escândalos, mestre em jogar no lixo reputações de celebridades políticas e artísticas em troca de propina. Seu nome é Rolando Garro e Llosa o descreve como um tipo de “andar tarzanesco”,, “dentes manchados de nicotina”, “sorrisinho de roedor”, “vozinha estridente”, e “tudo nele parecia feio e piegas”.

Garro procura Henrique Cárdenas, um dos homens mais ricos do Peru, a fim de achacar-lhe dinheiro para sustentar sua revista, cujo nome é Revelações. Para convencê-lo, entrega-lhe uma pasta com fotos de Cárdenas participando de uma bacanal.

Todos que cercam o jornalista são igualmente repelentes. O fotógrafo que flagrou o empresário é descrito como um “caboclinho mal vestido e de chinelos de dedos”, a principal redatora da Revelações era “uma jornalista nata e da mesma estirpe que ele (Garro), capaz de matar a própria mãe por um furo, principalmente se fosse algo sujo e escabroso”.

Mais adiante se sabe que a sórdida publicação é orientada pelo Doutor, homem forte do governo Fujimori. Llosa se refere a Vladimiro Montesinos, militar e eminência parda do Peru, depois acusado com seu chefe de ter roubado seis bilhões de dólares dos cofres públicos e os depositados em contas na Suíça, Grande Caiman e Estados Unidos.

Em um lance decisivo na história, um velho alquebrado, pobre, ex-recitador de poemas e ex-astro de um programa humorístico de televisão, que perdeu o emprego por obra e graça da revista de Garro e que desde então envia cartas às redações dos jornais denunciando as calúnias publicadas no periódico, é acusado de assassinato.

Trata-se de um frágil suspense policial, logo perceberá o leitor. E notará, ainda mais perplexo, como se dão os desfechos. De modo totalmente inverossímil, a jornalista de fofocas se torna a paladina da liberdade de expressão e deflagra uma grande onda que abala o edifício de arbitrariedades e autoritarismo do regime. Até que o escândalo das fotos exploda, a perplexa esposa do milionário jamais ouvira falar da existência da Revelações, ainda que no início do romance somos advertidos pelo autor de que o Peru é o país que mais ama fofoca no mundo. Ao final, como uma legítima telenovela das nove, o bem vence o mal.

Mario Vargas Llosa é um dos últimos sobreviventes de uma safra de escritores – Cortázar, Fuentes, Rosa, García Marquez – que renovou a arte do romance no século passado. Sem desprezar ou descartar as enormes conquistas da ficção do século dezenove, esses grandes artistas modernos reincorporaram a liberdade e o humor dos primeiros romancistas – Cervantes, Rabelais, Diderot. Sterne. Foi uma notável proeza. Para alcançá-la introduziram no romance o ensaio, as digressões, a ironia e o fantástico.

Penso em Pantaleão e as Visitadoras, um dos romances de Llosa de que mais gosto. Ou ainda Os Cadernos de Don Rigoberto, Neles, a narrativa realista é alternada com diálogos polifônicos, memorandos e relatórios militares, notícias de jornal. Há ali também política, miséria, observação de costumes e conflitos, críticas. Mas tudo isso é banhado pela ironia, que dissolve as certezas, e ligado pela imensa liberdade criativa do autor, que soube se esconder por trás de um romance. O que não aconteceu em Cinco Esquinas.

Cinco Esquinas (2016) de Mario Vargas Llosa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman – Alfaguara, 214 páginas, R$ 29,94

Literatura

André Nigri

Jornalista, crítico literário e leitor compulsivo.