A foda de Kafka e Flaubert
Por André Nigri
O sexo em O Castelo e Madame Bovary
É no início do terceiro capítulo de O Castelo que acontece o mágico encontro entre o agrimensor K. e a garçonete Frieda. Um dos encontros mais belos de toda a história da literatura. Detenho-me no momento em que começa essa cena, em um balcão na estalagem do castelo, em uma noite branca, gelada, numa pequena aldeia em algum lugar de um mundo criado pela imaginação de Franz Kafka. Graças a ela esse mundo tornou-se um cenário tão inesquecível para nós, tão palpável e concreto como os campos e os moinhos do Quixote:
“A cerveja foi servida por uma jovem que se chamava Frieda – uma moça que não atraía a atenção, pequena e loira, de traços tristes e maçãs magras, mas que surpreendia pelo olhar, um olhar de especial superioridade.”
Notem, é uma jovem comum, nem feia nem bela, uma mulher sob todos os aspectos insignificante, ordinária, como a maioria de nós, homens e mulheres. Seu trabalho na hospedaria é banal, maçante. O lugar é frequentado por camponeses e funcionários miúdos, gente ignorante, tosca, que fica sentada sobre barris enchendo a cara de cerveja. Que encanto uma baiuca como essa pode oferecer para uma cena de amor? O chão é sujo, o salão é abafado e o odor sufocante de cerveja é azedo. No entanto, Kafka faz um olhar pousar sobre a alma do recém-chegado e esse olhar brilha como uma pedrinha de cristal na escuridão:
“Quando o olhar incidiu sobre K., pareceu-lhe que já havia resolvido questões relativas a K. de cuja existência ele próprio ainda não tinha nenhum conhecimento; era esse olhar, porém, que o convencia de que elas existiam.”
O olhar de Frieda é uma verruma, ele alcança uma região ignorada no espírito de K., um território inconspícuo, e ninguém resiste a uma tal exploração. Por isso K. inclina-se sobre o balcão para atrair “outra vez com firmeza” o olhar de Frieda. Qualquer coisa que ela disser, ele está disposto a concordar. Está completamente abandonado a ela, está à sua mercê.
Antes de ser “promovida” a atendente na estalagem, Frieda trabalhava na estrebaria. Era uma camponesa, acostumada a trabalhos manuais duros, embrutecedores. Mas quando ela puxa K. até a porta sua mão revela-se “incomumente macia”. Um autor realista, um naturalista, um retratista de segunda categoria, um perfeito idiota da objetividade, jamais descreveria essas mãos como macias. Ora, se ela é uma grosseira mulher de aldeia, uma criada que se emporcalha com bosta de cavalo, como suas mãos podem ser macias? Não! Esse soldado da realidade escreveria que havia calosidades nas polpas dos dedos e aspereza na pele da palma. Não para Kafka. A mão de Frieda é macia assim como são macias as mãos de quem amamos, não importa se para todos os outros elas não sejam.
Na história da cultura do ocidente, os artistas sempre ataviaram o sexo no altar da beleza. Beleza sempre canonizada. Olímpica, sadia e harmoniosa com os gregos. Com os romanos, o sexo consumado em festins estupendos ao som das liras em prolongadas orgias regadas a vinho e banquetes. Catolicizado, distante, cingido pelo sagrado e o proibido, castrado e ungido de abominável pecado com os cristãos. Mais tarde, o sexo se mistura ao requinte das pacientes seduções, em carruagens puxadas por estupendos cavalos com impecáveis cocheiros de libré, na penumbra de alcovas adamascadas com os escritores libertinos, sentenciados após a revolução francesa como símbolos da degradação doentia dos costumes do antigo regime.
Quando o sexo cai no colo dos burgueses no século 19, lugar onde se encontra até hoje, ele é repintado com camadas de tinta velha recolhida no fundo de lendas medievais pelos românticos até sua mais completa vulgarização nos romances de quinta categoria, mesmo naqueles tingidos de uma pretensa obscenidade excitante, como o enfadonho Cinquenta Tons de Cinza, nas tolas e consoladoras comédias românticas do cinema, no melodrama barato e hígido das novelas de televisão, etc. etc. Etc…
Kafka foi o primeiro gênio da modernidade a vibrar a poesia da sexualidade num ambiente aparentemente antipoético.
Para poder passar a noite na companhia de Frieda, K. esconde-se no chão, atrás do balcão da estalagem. O assoalho é imundo, cheio de porcarias e poças de cerveja. Depois de colocar os camponeses, uma chusma de bêbados grosseiros, para fora, Frieda volta-se para o balcão enquanto conversa com o estalajadeiro, que pergunta onde foi parar o agrimensor.
Eis um resumo do diálogo. Prestem atenção nos pés de Frieda:
“’Onde está o agrimensor?’, perguntou.” (o dono do albergue).
“Esqueci completamente o agrimensor” – disse Frieda e colocou seu pequeno pé sobre o peito de K. – “Certamente ele já foi embora faz muito tempo.”
“Eu não o vi, disse o hospedeiro. E estive quase o tempo todo no corredor.”
“Mas aqui ele não está, disse Frieda friamente.”
“Talvez tenha se escondido, disse o hospedeiro. Pela impressão que tive dele, muito coisa pode ser-lhe atribuída.”
“Essa esperteza ele decerto não tem, disse Frieda e apertou mais o pé sobre K.”
Frieda fala novamente para o patrão, rindo:
“Talvez ele esteja aqui embaixo.”
Nesse ato abaixou-se até K., beijou-o de leve e voltando de um salto à posição anterior disse com tristeza:
“Não, ele não está aqui.”
Aparentemente convencido, o estalajadeiro despede-se da criada e vai embora. Mas antes mesmo de ele sumir pela porta, Frieda já tinha apagado a “luz elétrica” – percebam o prosaísmo dessa passagem – e estava deitada junto a K. sob o balcão.
O trecho seguinte desenrola-se em um único parágrafo. Trata-se da cena de amor entre os dois amantes. Atentem para a pontuação que traduz a respiração ofegante da cópula (os grifos são meus):
“Eles se abraçaram, o pequeno corpo ardia nas mãos de K., eles rolaram, num estado de esquecimento do qual K. tentava contínua mas inutilmente se livrar; alguns passos à frente, bateram surdamente na porta de Klamm e depois ficaram deitados nas pequenas poças de cerveja e outras sujeiras que cobriam o chão. Ali passaram-se as horas, horas de respiração confundida, de batidas comuns do coração, horas nas quais K. tinha sem parar o sentimento de que se perdia ou estivesse numa terra estranha (naquela região perscrutada pelo olhar de Frieda logo que se conheceram) como ninguém antes dele, uma terra estranha na qual até o ar não tinha nada de familiar (o sexo nos empurra para longe da família, é verdade, não pertencemos a mais ninguém) e em cujas tentações sem sentido não era possível fazer nada senão ir em frente e continuar se perdendo.”
Bom, estamos longe do cenário dos amantes em um banco sob anosas tílias, numa fria tarde de outono, na aleia dos luxuriantes jardins de um magnífico castelo próximo de Paris. Nenhuma alcova com uma porta secreta, nada de corpos enredados em lençóis de cetim sob o dossel sustentado por colunas mouriscas e travesseiros de penas de ganso. Ao invés disso, o assoalho nojento de um boteco. No lugar de damas libertinas ocultas por grossas camadas de pomada branca, despindo-se de seus vestidos de seda que farfalham em imaculados pisos de mármore reluzente, com os pezinhos metidos em borzeguins delicados e penteadeiras atopetadas de artigos de toucador, uma criadinha de rosto insípido com um avental enodoado. Não há tampouco os aromas do oriente trescalando na penumbra levemente dourada de velas tremeluzentes em castiçais de prata e todo aquele conjunto de refinamentos e atavios no altar ornamentado de riqueza e luxo onde consumam-se os amores proibidos tão ao gosto de um Crébillon, de um Denon ou daquele marquês encarcerado em Charenton. Nada disso. O coito de Frieda e K. é despido de ornamentos e requintes. No entanto, a maneira e a beleza como é descrita jamais foi alcançada antes de Kafka.
Kafka teve um predecessor? Claro, todos os artistas encontram em outros artistas uma fonte onde se banham. Na origem do erotismo do poeta de Praga imagino Gustave Flaubert oferecendo a cornucópia de sua poesia ao colega nascido três anos após sua morte.
Madame Bovary foi publicado em série na Revue de Paris ao longo de 1856. A história é muito conhecida. Flaubert foi acusado de obscenidade por uma corte francesa, julgado e absolvido.
No início de dezembro de 1856, os editores da Revue suprimiram o famoso trecho da carruagem. Trata-se do primeiro capítulo da terceira parte do romance. Imagino Kafka lendo-o pela primeira vez, depois uma segunda vez, lendo-o sempre, extasiado.
Depois de ter sido abandonado por Rodolphe na véspera da fuga com o amante, Emma Bovary, Rouault em solteira, cai doente e, após uma penosa convalescença, é convencida pelo patético e pesadão Charles, seu marido, a ir ao teatro em Rouen. No intervalo da ópera, ela reencontra Léon, a quem amou silenciosamente no início de seu enfadonho matrimônio.
Ela quase nos convence de que não vai plantar novamente um par de cornos no devotado Charles, e chega a escrever uma carta afirmando a impossibilidade de ter um caso com o jovem advogado, que ao revê-la arde de paixão para possuí-la. Ela combina de encontrar com ele na catedral da cidade – vejam vocês como ao diabólico Gustave não escapava nada: o segundo adultério de Emma principia na porta de uma igreja. Ela chega, faz que entrega a carta para ele, entra numa capela e começa a rezar. Enquanto isso, Léon queima de impaciência, ainda mais porque um auxiliar de sacristão, uma barata de sacristia qualquer, insiste em mostrar as riquezas que ornamentam a santa construção histórica. Para livrar-se dele e derrubar a perigosa veleidade de Emma, ele a leva para o adro da catedral e a empurra para dentro da primeira carruagem que passa.
“Aonde o senhor deseja ir?’, o cocheiro pergunta.
“Onde você quiser!”, responde o afogueado Léon.
“E a pesada máquina pôs-se a caminho”, escreve Flaubert.
É fácil para o leitor calcular quanto tempo dura o passeio da pachorrenta geringonça pela cidade de Rouen. Eles haviam combinado o encontro para as onze horas da manhã. Emma atrasa-se um pouquinho. Digamos que pouco antes do meio-dia os dois se fecham na carroça. Era um daqueles veículos de tração animal semelhantes a urnas com apenas uma janelinha de vidro discreta, “uma carruagem com os estores fechados e que aparecia continuamente, mais fechada do que um túmulo e sacudida como um navio”, nas palavras do autor. Como sabemos que eles fazem amor? Há um detalhe soberbo – vocês podem ver uma cópia barata dessa cena naquele lixo romântico do Titanic: na hora em que a mão da bela atriz que interpreta a mocinha rica que se apaixona pelo pintor pobretão aparece no vidro de um carro parado nos porões do navio enquanto eles transam.
Em Flaubert o ato amoroso é descrito assim:
“Uma vez, pela metade do dia, em pleno campo, no momento em que o sol dardejava seus raios com maior força contra as velhas lanternas prateadas, uma mão nua passou sob as pequenas cortinas de fazenda amarela e lançou pedaços de papel (trata-se da carta da virtuosa adúltera, sua tênue resistência moral), que se dispersaram ao vento e caíram mais longe como borboletas brancas num campo de trevos vermelhos floridos.”
Às seis horas da tarde, o escangalhado coche para em uma ruazinha e Emma desce com o véu abaixado. Seis horas de fornicação! Em Kafka também: “Passam-se as horas, horas de respiração confundida”, entre Frieda e K. que “rolaram a noite inteira” no chão da estalagem.
Mas há uma diferença de extrema importância entre as duas cópulas. Na época de Flaubert, os amantes podiam manter sua paixão oculta: os habitantes de Rouen ficavam intrigados com aquele vaivém do carro pelas ruas e praças da cidade, mas não sabiam quem estava lá dentro e muito menos o que estavam fazendo. Já na época de Kafka – e cada vez mais na nossa própria época -, há sempre alguém espiando o que fazemos. Quando K. retorna de sua viagem ao longínquo e mágico território do desejo, Frieda aponta para o alto do balcão: lá estão sentados os dois ajudantes do agrimensor. Com a cara de satisfação do dever cumprido, eles dizem: “Ficamos sentados a noite toda aqui.”
Mesmo vulgarmente espionado, o sexo continua sendo o território supremo do mistério. Não por acaso, desde a origem da cultura ele está associado à morte, de cujos domínios jamais escaparemos. O sexo é, entre todas as fronteiras de nossa vida, a mais profunda: “E justamente porque ela é a região mais profunda da vida, a questão que se coloca para a sexualidade é a mais profunda de todas.” (Milan Kundera)
Italo Calvino escreveu ser a sexualidade na literatura uma linguagem em que “aquilo que não é dito é mais importante do que aquilo que é dito”. E lembra que isso é válido tanto para os escritores que abordam os temas sexuais indiretamente quanto para aqueles que “investem neles toda a força de seu discurso”.
Gustave Flaubert e Franz Kafka iluminaram com seu discurso esse mistério com a centelha da grande arte de que eram portadores e isso tornou o sexo ainda mais fascinante para nós, para nós que os lemos, é claro. A despeito da banalidade e das investidas de normatização a que é constantemente submetido, o sexo permanece sendo aquele “girasole impazzito di luce” (Montale), o sublime encontro entre duas pessoas, entre K. e Frieda, entre o homem e a arte.
SERVIÇO: O Castelo de Franz Kafka, tradução de Modesto Carone (Companhia das Letras)
Madame Bovary de Gustave Flaubert, tradução de Mário Laranjeira (Penguin/Companhia das Letras)
Literatura
André Nigri
Jornalista, crítico literário e leitor compulsivo.