Bate papo com Nêgo Bispo
Uma noite bebendo pinga e conversando com o líder quilombola do Piauí

Dois repórteres conversaram com Nêgo Bispo, no boteco da Rute, no bairro Ouro Preto. Seguem os dois textos e as duas visões de um mesmo encontro. O primeiro, de José Antônio, e o segundo, de Flávio de Castro.
Nêgo Bispo é dos nossos
Por José Antônio Bicalho
Liguei para Nêgo Bispo para marcar o encontro que fora costurado previamente por uma amiga em comum. Bispo disse que poderia me encontrar pela manhã, na UFMG, ou a noite, num barzinho. Preferi o bar. Tinha informação de que ele era bom de papo e de copo, e que um potencializava o outro.
Chegamos, eu e Flávio, atrasados por conta de um trânsito infernal. Bispo riu do meu embaraço e disse não funcionar “na base do compromisso”, e que teria todo o tempo do mundo. Sentei-me na grande mesa onde ele dominava a atenção de umas dez pessoas. Imediatamente um copo de pinga branca surgiu na minha frente. Mergulhei, então, na pinga e na conversa.
Nêgo Bispo é um intelectual. É lavrador, poeta, escritor e ativista da causa quilombola. É negro, baixo e forte. Sorri todo o tempo e ri constantemente de suas próprias palavras. Fala como uma metralhadora e diz um punhado de coisas originais e instigantes.
Nosso encontro, no Bar da Rute, no bairro Ouro Preto, se deu por conta de sua vinda a Belo Horizonte como professor convidado da UFMG, onde ministrou curso transversal de Saberes Tradicionais. Desculpem o “control C, control V”, mas, para não perder tempo, transcrevo um mini-currículo que encontrei no site da Universidade de Brasília:
“Antônio Bispo dos Santos nasceu em 10/12/1959 no Vale do Rio Berlengas, antigo povoado de Papagaio, hoje município de Francinópolis/PI. É lavrador, formado por mestras e mestres de ofícios, e morador do quilombo Saco do Curtume, localizado no município de São João do Piauí, semiárido piauiense, distante cerca de 500 km de Teresina. Militante de grande expressão no movimento social quilombola e nos movimentos de luta pela terra”.
Posto quem é Nêgo Bispo, vamos ao nosso papo. Falamos de tudo um pouco: de cajuína (“Bebida plural, não tem uma igual a outra, artesanal, patrimônio do Piauí”), do sincretismo nos quilombos (Do nosso lado, o negócio é resolver. Se não for pelo milagre, vai pela magia), da longa história de massacres em quilombos (“Todos sabem de Canudos, mas ninguém sabe de Calderões, de Pau de Cuié e tantos outros etinocídios), da realidade do Piauí (“Onde a colonização chegou por último e o capitalismo só agora, e por isso ainda tem um povo generoso”), das limitações da Comissão da Verdade (“Feita para indenizar a classe média branca que morreu no Araguaia, mas ignorou os massacres nos quilombos”), dos anos de esquerda no poder (“Amorteceu os movimentos sociais, que ficaram como que hipnotizados, na expectativa de uma promessa que não se realizou), das ameaças ao conjunto quilombola do semi-árido nordestino (“A mineração, os parques de energia solar, as obras do PAC, a Transnordestina, a agricultura em grande escala e as multinacionais do agronegócio – a Bunge, a Cargil e a Monsanto), e sobre a história do movimento quilombola (Quilombo sempre foi considerado organização criminosa, desde 1888. Então o que nos segurou foi nossa ancestralidade e nossa malandragem. Tivemos que negociar nossa identidade para sobreviver”).
Mas não é só coerência, originalidade e retidão do discurso. É também veemência e humor. Para quem se interessar, e eu recomendo vivamente, existem alguns vídeos no youtube de aulas dadas por Nêgo Bispo em uma série de universidades. Não são tão divertidas quanto foi nosso papo de boteco, mas são ótimas.
O camarada é cheio de tiradas sensacionais. “Fui num terreiro aqui (em BH) e bebi sangue e pinga com Exu. Aí dizem que nós sacrificamos animais para beber sangue. Sacrificamos, sim! Bebemos, sim! Mas quem acusa come choriço, que é também é sangue de animal sacrificado, só que cozido. Então, meu amigo, o problema é só de preferência de paladar!”, e solta uma gostosa gargalhada.
Sobre o golpe contra Dilma, Nêgo Bispo diz não entrar nessa seara. “FHC, Lula e Dilma criaram as condições para o avanço do capital sobre os quilombos, para esse desastre que está se anunciando. Então, não sou eu quem vai defender Dilma, não é problema meu. Quero saber é como ficam os quilombos nesse momento. Meu negócio é defender, é resistir”, diz. Mas, na sequência, solta que Dilma “é igual formiga que entrou na festa de tamanduá”, e mais gargalhadas.
A preocupação de Bispo está centrada principalmente na área do Matopiba, como é chamada a grande região compreendida na confluência dos estados do Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia. “É ali que nascem as águas e onde acontece a invasão do capital. As empresas estrangeiras estão comprando terras, águas e minérios, e colocando pressão sobre as populações tradicionais. Na prática, o capital estrangeiro está criando um estado para ele dentro do Brasil, com leis próprias e financiado pelo governo. Nem o povo do Sul, que se acha, sabe disso”.
E, sobre a palavra ‘quilombo’, Bispo faz uma revelação: “Os nomes quilombo e quilombola foram dados pelos colonialistas, que têm que adjetivar tudo para comprar e vender. A gente se identifica mesmo é como ‘comunidade’. Mas, se são rótulos que nos ajudam, então aceitamos e usamos. Uma coisa que aprendemos é sermos flexíveis para sobreviver”, diz.
Nêgo Bispo deixou sua região natal de Piquizeiro aos 39 anos e hoje mora na área do Saco-Curtume, em São João do Piauí, também interior do Piauí. O motivo da mudança foi a militância política. A área guarda a maior concentração de quilombos do semi-árido nordestino, com quase 200 comunidades quilombolas.
Lembrando da sua terra, diz: “É muito parecido com aqui. Também comemos muita carne de porco. E tem aí a Serra (o complexo de favelas do Cafezal), resistindo contra tudo e contra todos. Igualzinho a gente lá”.
O BISPO, A MULHER E O JUDAS
Por Flávio de Castro
É inevitável: saindo da avenida do Contorno já começa o jetleg. Uma outra cidade se apresenta além da hegemonia dos espetinhos, do cartel das drogarias e dos infinitos prédios de três andares sem elevador. Aos poucos a Zona Sul é só um emaranhado de luzes no retrovisor do carro, que avança para o Norte rumo ao Bairro Ouro Preto. Pois é na pleonástica rua Guarda Custódio que a Divisão Gonzo do Beltrano adentra o Bar da Rute (ou seria Bar da Root?) pra beber cachaça, comer moela e rabada e, principlamente, entrevistar o Nêgo Bispo, mestre de ofícios e líder quilombola da comunidade Saco-Cortume, no semiárido do Piauí.
A conversa pedia cana e pimenta. Pedia alguma aproximação de costumes ou ainda um processo simbólico que os indentificassem enquanto brasileiros, sulamericanos ou ainda terráqueos que habitam o mesmo planeta. Ledo engano – o inferno são @s outr@s. E, por motivos óbvios, o entrevistador macho branco barrigudo do sudeste acabaria opondo-se ao entrevistado negro barrigudo do nordeste por aparentar (ou talvez realmente ser) a legítima metonímia da violência colonizadora. Daí a dificuldade de aproximação entre estranhos, apesar da espirituosidade e da alegria do entrevistado, que jurava beber sangue e pinga com seus deuses e demônios.
“Se não resolver pelo milagre, nós resolvemos pelo feitiço. O que importa para a gente é resolver”. O aforismo, pronunciado antes de uma sonora talagada de mandureba, encantou a reportagem do O Beltrano, que se embriagava de curiosidade, surpresa e aguardente :
“O estado só nos reconhece pela escrita. Vim a BH a convite da UFMG, que exigiu o recibo da passagem de avião, do hotel e da alimentação para confirmar minha presença na cidade. Ou seja, não basta eu estar aqui conversando com você, bem dormido e alimentado. Precisa de um documento para atestar minha presença neste local e momento”.
A retórica estonteante do Nêgo Bispo nocauteava o entrevistador. Segundo o mestre, o processo de impeachment da presidenta Dilma Rouseff assemelhou-se ao de uma “formiga convidada para uma festa de Tamanduás”( gargalhadas). E que a Comissão da Verdade só se ocupa em esclarecer o desaparecimento de “jovens brancos de classe média, sem jamais atentar para o extermínio dos negros e dos índios”. Para o líder quilombola, os movimentos sociais ficaram embriagados (“embriagados não, pois embriagado estou eu”), ou melhor, ficaram hipnotizados durante o Governo do PT, que negligenciou sistematicamente os direitos das comunidades populares ancestrais, ao passo em que sempre se vangloriava sobre o empoderamento das mesmas.
A entrevista ficou tensa, uma vez declarada a postura contundente do Nêgo Bispo, reiterada em um artigo de sua autoria publicado na revista Piseagrama (BH, 2016) no qual afirmou que “…por colonização, compreendemos todos os processos etnocêntricos de invasão, expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma cultura pela outra, independentemente do território geográfico. E chamamos contracolonização todos os processos de resistência e luta em defesa dos territórios dos povos contracolonizadores, seus símbolos, significações e modos de vida.”
Estava estabelecida a confusão, palavra que, aliás, em espanhol é “quilombo” – de um lado o jornalista branco colonizador, do outro o lider comunitário contracolonizador, cercado de um séquito de universitárias que enchiam-lhe o copo de pinga, enxugavam-lhe o suor do rosto, acariciavam-lhe os cabelos e beijavam o velho mestre como se fosse um guru espiritual ou mesmo um herói tropicalista macunaímico.
Eis que a entrevista se reverte em silêncio e até mesmo em constrangimento, diante da afirmação de que, dado o golpe, a presidenta “foi é tarde, pois já devia ter saído antes”, visto que nenhum governo se importa ou se importou com as quase duzentas comunidades Quilombolas do Piauí. O repórter tossiu sem tosse e elogiou a comida caseira de Dona Rute, até que numa tentativa de aliviar a ancestral revolta de Nêgo Bispo, fez uma nova pergunta na tentativa de desviar o rumo da conversa : “E a mulher, seu Bispo? Como se dá questão de gênero no Quilombo Saco Cortume?”
O piauiense sorriu e fez uma belissima citação : “Mãe Joana me dizia, ‘Nêgo, presta atenção e toma cuidado na sua relação com as mulheres. Pois nós vamos vencer, e no dia da nossa vitória você tem que ver de que lado vai estar’”. O repórter do Beltrano sorriu aquele sorriso de quem acabou de encontrar o trecho ideal para arrematar o seu texto. Mas eis que de repente, não mais que de repente, o séquito das universitárias, vestido de estamparia floral e ornado com arte plumária indígena, resolveeu interpelar o incauto jornalista:
“E por que você não pergunta da mulher para as mulheres?”
“Mas a matéria é sobre o mestre quilombola!”
As estudantes, oriundas da simpática cidade de Sete Lagoas, não se satisfizeram com a resposta e logo iniciam uma virulenta sabatina com o gordo, careca, bêbado e desavisado repórter. Exigiram explicativas, justificativas e até mesmo uma trepada embriagada para selar de vez a relação de alteridade e o empoderamento. O escriba logo se esquivou do embate, dizendo-se recém adepto da monogamia e que, não obstante, tinha hora pra chegar em casa.
“Então vamos descontruir esssa monogamia machista patriarcal!”
O machismo atávico, a nefasta herança patriarcal fez do jornalista a metonímia de toda a opressão. Nêgo Bispo saiu de cena – foi recitar versos para um antropólogo que bebia junto de suas simpáticas orientandas. E o macho branco, gordo, careca, sabia alí que estava com o cu na mão – ainda que mantivesse quase todos os seus boletos em dia. Dedos apontados, olhares inquistores, perguntas insidiosas. “Preste atenção na sua relação com as mulheres”, repetia o entrevistador mentalmente, seguindo as palavras do mestre Bispo e evitando o confronto a todo custo. Afinal, a única coisa a se fazer neste momento é escutar, ou ao menos tentar aprender a escutar.
No entanto o escarcéu já estava armado: a recusa das aventuras eróticas foi muito mal recebida pelas eloquentes estudiosas das comunidades quilombolas, que se conluiram para atacar o homem desorientado que foi até a Zona Norte para saber mais sobre os movimentos populares do semiárido piauiense. Todavia, só perde a calma quem tem alma, mesmo que seja a alma torta e falida um homem branco, colonizador e atavicamente machista. E o sujeito, então, bateu a mão na mesa e ergueu a voz:
“Eu não sou o Judas Particular de vocês! Eu não sou a metonímia da opressão, da violência, do etnocentrismo! Sou apenas um sujeito que veio aqui fazer o seu trabalho de tentar ao menos ouvir o outro, ainda que essa escuta se faça improvavel neste turbilhão de engajamento e animosidade”.
Fim do alvoroço. O Nêgo Bispo improvisou uns versos sobre a beleza das mineiras, e não foi questionado e nem mesmo interpelado. Dona Rute trouxe a conta e foram cada um pro seu canto, pregando um ideal de igualdade distante e embriagado. Negro, branco, esquerdomacho, feminista, líder quilombola e pequeno burguês, cada qual pro seu canto, marcha, quilombola, universidade ou hashtag. E a entrevista terminou separando e desorientando aqueles que, por justiça e esperança, haveriam de conviver em paz.