Conectando favela e asfalto

Linha de ônibus conquistada na luta dos moradores muda cotidiano do Aglomerado da Serra


Por Petra Fantini

Foto: Petra Fantini

Depois da mobilização das comunidades do aglomerado da Serra, por quase dois anos, a linha de ônibus Suplementar 19 (Hospital Evangélico/Shopping Boulevard) está regularizada desde novembro de 2017. Passados três meses de circulação dos ônibus nesse trecho esquecido pelo poder público, O Beltrano voltou à Serra para verificar os efeitos da melhoria na mobilidade no cotidiano das comunidades, que agora contam com acesso ao metrô, à Avenida dos Andradas, ao comércio e ao Shopping Boulevard. Não é mais necessário pegar um ônibus até o centro e, então, outro para ir a Região Leste, tão próxima do aglomerado.

Um ônibus que chegasse ao metrô era demanda dos moradores do aglomerado há mais de 10 anos. Desde que o ex-prefeito e atual governador Fernando Pimentel construiu a Avenida do Cardoso, em 2007, no âmbito do projeto Vila Viva, a via nunca contou com transporte público. A situação mudou quando, no primeiro semestre de 2016, o grupo Arquitetos sem Fronteiras (ASF) foi convidado pelo Ministério Público de Minas Gerais a participar do projeto Diálogos Comunitários, do Programa de Apoio às Ações Comunitárias Autogestionadas. Representantes de comunidades foram chamados para refletir sobre soluções efetivas para problemas locais.

Floriscena Cardoso (conhecida como Flor), diretora de três escolas municipais, membra do ASF e líder comunitária do Aglomerado, esteve presente na formulação da proposta que elencou duas iniciativas prioritárias para a favela: uma relacionada à área de preservação que fora abandonada pelo poder público e hoje serve como lixão. E, a outra, à necessidade de um ônibus que ligasse a praça do Cardoso, fruto do Vila Viva, ao metrô de Santa Teresa.

Para que a iniciativa do ônibus fosse estruturada, o movimento Tarifa Zero foi convidado para prestar auxílio técnico e consultoria aos líderes do movimento. Foi realizado um verdadeiro aulão, segundo define Flor, no qual se explicou como se dá o processo de solicitação de uma nova linha de ônibus e os diferentes modelos de transporte público em Belo Horizonte. Dali para frente, seguiram-se inúmeras reuniões com membros da BHTrans e do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (SetraBH), com apresentação de documentos e a entrega, em 20 de janeiro de 2017, de um abaixo-assinado com quatro mil nomes reivindicando a nova linha.

“Fizemos o projeto da linha, mostrando ao que a comunidade teria acesso, e apontando a importância de um preço diferenciado”, conta Flor. Um dos embates entre a BHTrans e a comunidade se deu justamente sobre o preço. As lideranças do aglomerado exigiram a classificação da linha como sendo ‘de vilas e favelas’, e uma passagem de R$ 0,90, enquanto a Prefeitura defendeu que não seria possível um preço inferior a R$ 2,85. Segundo a Prefeitura, a nova linha não se encaixaria na classificação solicitada por conta do itinerário, entre o aglomerado da Serra (Centro-sul), e a Região Leste.

Ao longo do biênio 2016-2017, a pressão foi constante. O Tarifa Zero subsidiou alguns ônibus gratuitos em 2016 que seguiram o percurso que a linha faria. “Nós fizemos encontros com moradores, estudantes da EJA, da [escola Professor] Edson Pisani, da [escola Vila] Fazendinha. Nós fizemos assembleias com a presença da BHTrans, das empresas de ônibus”, conta a diretora.

Então, após muita insistência e reuniões com o vice-prefeito Paulo Lamac, o grupo chegou ao prefeito Alexandre Kalil, que propôs que os suplementares assumissem a linha. O Serviço Público de Transporte Coletivo Suplementar de Passageiros é a modalidade que complementa o sistema municipal de transporte público – diferente da rede comum, neste caso os motoristas são os donos dos veículos. O Sindicato dos Permissionários Autônomos do Transporte Suplementar de Passageiros de Belo Horizonte (Sindpautras) representa a categoria e assumiu a demanda do Aglomerado da Serra. No processo de negociação, foi possível chegar ao preço da passagem de R$ 1,50 e à ampliação do itinerário da linha S19 – agora, ela chegaria até o Boulevard Shopping.

Assim, no dia 31 de outubro de 2017, foi publicado no Diário Oficial do Município a portaria Portaria BHTrans DPR Nº 092/2017 (http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1185968), que estabeleceu a criação da linha S19 em caráter experimental por, no mínimo, 30 dias.

Mudanças

Os relatos dão conta de que o cotidiano no Aglomerado não é mais o mesmo desde que o ônibus começou a circular. “O trabalhador sai daqui, pega esse ônibus a R$ 1,50, e aí pega o metrô por R$ 1,80. Ele vai gastar R$ 3,30 para ir até Contagem”, exemplifica Flor. Há poucos meses, esse mesmo trabalhador teria que pegar um ônibus até o centro, por R$ 4,05, e então pegar o metropolitano para Contagem, com custo ainda maior.

Flor conta ainda a história dos funcionários da escola em que é diretora, que fazem compras na região Leste e que, antes do S19, precisavam pegar táxi, fosse ele legalizado ou clandestino. “Antes desse ônibus, nós tínhamos acesso só à centro-sul, onde os supermercados são caros porque são pensados para o morador da Serra, do Funcionários”, explica. “Então, imagina só, a pessoa pagava 20, 30 reais. Agora paga R$ 1,50 para ir e R$ 1,50 para voltar. É muita diferença”, afirma. Estudantes da PUC e funcionários do Shopping Boulevard também estão entre os beneficiados.

Antes, Bianca Freitas precisava pegar dois ônibus para o curto trajeto de sete quilômetros até o local de trabalho, no shopping. Hoje, ela chega em 20 minutos. “Foi uma coisa muito boa que aconteceu com a gente”, diz. Duas mães sentadas atrás de Bianca durante a entrevista, que carregavam ao todo três crianças, comentaram: para passear no shopping, ou elas iam de carro ou não iam. Analice Pereira de Souza, outra passageira, diz que agora as pessoas conseguem chegar ao trabalho pontualmente. Juliana Santos, que estava sentada ao lado de Analice, disse que agora consegue chegar uma hora mais cedo no serviço. A Câmara Municipal, que abriga um Sine, um restaurante popular e emite documentos, também está ao alcance dos moradores.

O ônibus garante o efetivo acesso do Aglomerado à malha de transporte público da cidade, conforme diz Mario Corrêa, integrante do Tarifa Zero. “Ele liga ao metrô e às diversas linhas de ônibus, ao comércio no pé do Aglomerado que é mais barato do que o da zona sul, acessado pelas linhas azuis normais. Então é uma questão de acessibilidade, direito à cidade, de poder levar o filho para a escola um pouco mais tarde”, diz Mario.

Foto: Petra Fantini Tarifa Zero produziu sinalização customizada para os pontos de ônibus

Futuro

A expectativa agora é que seja feita a publicação definitiva da BHTrans no Diário do município. Por nota, a assessoria do órgão explica que a fase experimental da S19 foi necessária para “verificar se a relação entre demanda e oferta, ou receita e custo, está compatível com as condições previstas nos contratos (viabilidade econômica)”. A nota garante que não há necessidade de publicação de nova portaria para a continuidade da linha.

Além disso, espera-se que os horários sejam expandidos e que os ônibus circulem também aos domingos. Para Bianca, que trabalha em domingos alternados, poder contar com a S19 seria muito importante. Além disso, sem circulação aos domingos, Flor ressalta que o ônibus tem um caráter limitado, sendo “só para o trabalho, e não para o lazer do trabalhador”.

Caio Augusto, trocador em um dos veículos em circulação, esteve nas reuniões a partir do momento em que o Sindpautras assumiu a negociação. O papel de profissionais como trocadores e motoristas foi o de elaborar o quadro de horários, adequá-lo e promover viagens-teste nesse período de adaptação. Em dois domingos, nos dias 14 e 21 de janeiro, foi feita a experiência de colocar o ônibus na rua. O número de usuários ficou abaixo do viável, mas Caio espera que o teste que será realizado depois do Carnaval, quando as aulas terão retornado, seja melhor.

Foto: Petra Fantini Pixação próxima à Avenida do Cardoso

“(A conquista) foi muito interessante, principalmente porque existe uma grande descrença nas ações do poder público. As pessoas buscam tantas coisas e são tantos nãos…”, reflete Flor. A confiança, porém, foi crescendo à medida em que as demandas foram caminhando. Os moradores passaram a buscar informações. Quem não podia comparecer às reuniões entrava em contato via Whatsapp, Facebook, ligava ou então abordava os organizadores na rua. “Até nisso esse ônibus é muito importante. Para as pessoas acreditarem que a luta coletiva tem resultado”.

Sua luta já inspirou outras comunidades da região. Moradores da Rua F, onde foram construídos prédios para o remanejamento de famílias durante a construção da Avenida do Cardoso, questionam a diretora sobre como está a questão do transporte público para eles. Flor então responde que “está igual os moradores da rua F, né, paradinho. O dia que vocês fizerem alguma coisa, a gente está junto”, conta entre risos.

“As pessoas têm que entender que essa luta é todo mundo. Não é esperar alguém vir e fazer essa luta por nós. Temos que entrar na luta juntos”, defende. Moradores da Vila Pau Comeu, localizada próxima à avenida do Contorno, inacessível por ônibus, também iniciaram um movimento organizado. Flor enxerga esses resultados com animação. “A importância desse ato político e de cidadania era esse, abrir outras frentes para essa comunidade aqui e para as outras”.