Crise ameaça fábrica da Mercedes-Benz
“Pode parecer protecionismo, mas precisamos de algumas vantagens para mantermos a fabricação nacional”, afirma presidente da Mercedes
Por Homero Gottardello

– Mercedes-Benz/DIVULGAÇÃO
Enquanto a mentira da retomada do crescimento no setor automotivo brasileiro ganha corpo, pelas mãos da imprensa especializada, a Mercedes-Benz se prepara para interromper a produção nacional do GLA e do Classe C. Hoje, a dupla é feita na “progressista” Iracemápolis, no interior paulista, onde a marca investiu R$ 600 milhões – na verdade, o dinheiro não veio da matriz alemã, mas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – para uma capacidade instalada de 20 mil unidades anuais. O problema é que, menos de dois anos após ser inaugurada, a planta pode ter suas operações encerradas, respingando na fábrica mineira de Juiz de Fora. “O fato é que construímos esta unidade seguindo a política nacional para o setor e, com o fim das vantagens para quem produz localmente, fica inviável operar com um volume tão pequeno como o que temos”, ponderou o presidente da companhia para o Brasil e a América Latina, Philipp Schiemer.
O leitor que acompanha os números do mercado de automóveis, pela grande mídia, pode estranhar a notícia, afinal, as manchetes comemoram o crescimento nas vendas. Ocorre que os jornalões e revistas vivem, hoje, da esmola das montadoras. Então, é bom que eles mintam para seus leitores, os estimulando a embarcar em uma canoa furada. A verdade é que, nos últimos cincos anos, o setor encolheu 40% – recentemente, só Iraque, Quênia, Nigéria, Omã e Equador, entre outros poucos países, apresentaram perdas maiores que a do Brasil, onde este mercado encolheu mais do que na Namíbia, no Paraguai ou em Bangladesh.

De volta à Mercedes-Benz brasileira, não há como negar que as vendas dos modelos nacionalizados estão bem abaixo do previsto. A perua de estilo aventureiro fechará este ano com menos de quatro mil unidades comercializadas, enquanto o sedã médio não deve chegar nem nisto. Ou seja, com uma ociosidade de mais de 60% e na iminência da chegada de uma nova onda de importados, em função do fim da sobretaxação do programa Inovar-Auto, a Mercedes-Benz já fez as contas e viu que trazer a dupla de fora será uma operação mais rentável do que sua produção local. “Se o governo reduzisse o imposto de importação de componentes, ganharíamos competitividade”, sugere o executivo. “Pode parecer protecionismo, mas precisamos de algumas vantagens para mantermos a fabricação nacional”.
É preciso ser muito ingênuo para não enxergar que, na verdade, Schiemer está dando um ultimato ao governo federal, ameaçando tirar o time de campo e deixar o prejuízo para trás – ou melhor, para os cofres públicos. A mesma notícia já tinha sido ventilada em abril, mas foi desmentida na época pelo próprio presidente da Mercedes-Benz. Agora, que o tema volta à tona com mais força, a situação acende uma luz de alerta para os mineiros, já que a fábrica de Juiz de Fora vive assombrada pelo mesmo fantasma que, hoje, atemoriza a unidade de Iracemápolis.
Nascida de uma gestação da Daimler-Chrysler, o malfadado casamento entre o grupo que controla a Mercedes-Benz e uma das três gigantes norte-americanas do setor automotivo, a fábrica juiz-forana foi inaugurada em 1999 para produzir a primeira geração do Classe A. A capacidade instalada de 70 mil unidades jamais foi atingida e, no seu ano de melhor desempenho comercial, o monovolume vendeu pouco mais de 15 mil unidades no país. Com a morte prematura do Classe A, a planta se tornou um estorvo para a montadora que, pressionada por todos os lados para não repetir a desonra de abandonar o campo de batalha, como a Dodge (subsidiária da Chrysler) havia feito em Campo Largo, no Paraná, a companhia tentou de tudo até chegar ao denominador atual.

Mercedes-Benz/DIVULGAÇÃO
ABC
Hoje, são feitos em Juiz de Fora os caminhões das linhas Accelo, com peso bruto total (PBT) a partir de oito toneladas, e Actros, para composições rodoviárias, com PBT de até 74 toneladas e 123 toneladas de capacidade máxima de tração (CMT), para uso fora de estrada. Trata-se de uma operação de baixíssimo nível de automação, que cobre as duas pontas do mercado de transportes, que são os caminhõezinhos de entrega e os cavalos-mecânicos mais potentes da categoria. Nesta semana, o ensaboado Schiemer disse à agência Reuters que estima um crescimento de 30% nas vendas da Mercedes-Benz entre os pesados, para o ano que vem, mas, mesmo que isso ocorra, a montadora não reaveria sequer os volumes de cinco anos atrás.
“Teremos investimentos na área de infraestrutura, em 2018, uma boa safra agrícola, queda no desemprego e aumento no consumo das famílias”, afirmou o executivo, que enxerga um futuro cor-de-rosa para o Brasil. De outros pontos elencados por Schiemer, o único que faz sentido é a necessidade de renovação da frota, algo que os transportadores vêm adiando desde 2011. O resto é jogo de confete para sobrelevar sua promessa de investimentos de R$ 2,4 bilhões, feita no início de outubro. Sabe-se lá quanto deste total virá do BNDES, mas o próprio Schiemer confirmou que o dinheiro será aplicado na modernização das fábricas de caminhões e ônibus da região do ABC, em São Paulo. Ou seja, depois de fechar cinco mil postos de trabalho diretos, nos últimos quatro anos, a Mercedes-Benz anuncia que vai reformular sua produção, priorizando o interior paulista com seu aporte.
Ora, se a fábrica de Iracemápolis vai ficar de fora das subvenções, o que dizer da unidade juiz-forana?
Está para lá de evidente que a modernização das fábricas do ABC tem como objetivo torná-las mais produtivas, ampliando sua capacidade e preparando o cadafalso para o sacrifício das plantas de Iracemápolis e Juiz de Fora. Aliás, a marca acena de todas as formas neste sentido e só não enxerga quem não quer. Hoje, ela emprega mais de sete mil trabalhadores, no ABC, e somente 700 em Minas Gerais. Nos últimos cinco anos, as vendas de caminhões da Mercedes-Benz caíram 57,5%, de 31,7 mil para 13,4 mil unidades. Já as vendas do Acello e do Actros caíram 35%, de 6,4 mil para 4,2 mil unidades. Estes números mostram, de forma cristalina, que se toda a produção da fábrica mineira for realocada para o ABC, a Mercedes-Benz fará uma economia gigantesca em escala, processos, logística e mão de obra. Isso para citar apenas o básico da atividade fabril.
O leitor mais crendeiro pode retrucar: “mas a Mercedes-Benz está contratando novos estagiários em Juiz de Fora”, “mas o presidente da empresa garantiu que os investimentos também chegarão a Minas”, “mas isso, mas aquilo”. Na vida real, o setor automotivo espelha o mercado da bola e quem acompanha os bastidores do futebol sabe que, toda vez que um dirigente afirma que seu treinador segue prestigiado no comando do time, apesar dos maus resultados, é sinal de que o técnico cairá nas próximas horas. Também aqui a mentirada serve apenas para desviar os holofotes, enquanto a rapinagem age no escuro. Por isso, é bom os juiz-forenses colocarem as barbas de molho.