Goma fala

Uma entrevista com Goma,  recém liberto de uma prisão injusta, acusado de envolvimento na ação na Igrejinha da Pampulha.


Por Rafael Mendonça

Foto: Rafael Mendonça
Arquivo Pessoal

Goma (nascido João Marcelo Capelão) é o mais notório e prolífico pixador de Belo Horizonte (optamos pela grafia de rua ‘pixação’ a ‘pichação’, e de ‘pixo’ a ‘picho’). Já foi preso duas vezes. Na primeira, em 2010, ficou quatro meses em cana. Na segunda, no ano passado, oito meses. Mas ainda pode voltar. Está respondendo a processo não apenas por pixação (que poderia levar a pena de seis meses a um ano de prisão, o que significa que o encarceramento deveria ser substituído por trabalho comunitário), mas também por formação de quadrilha (o que aumenta a possibilidade de condenação para até oito anos, obrigando ao cumprimento inicial da pena em regime fechado). Desde a onda repressiva que se seguiu à pixação da Igrejinha da Pampulha, na qual foi injustamente envolvido, Goma virou o alvo principal da perseguição policial aos pixadores em Belo Horizonte. Para a entrevista que se segue, Goma recebeu O Beltrano em sua casa, poucos dias depois de ter progredido da prisão preventiva para a domiciliar (está usando tornozeleira eletrônica). Abaixo, a transcrição da nossa conversa sem nenhuma censura.

Conta um pouco da sua história. Como começou o lance do pixo para você?

Comecei a despertar pra pixação aos 12, 13 anos, na escola. Cheguei na escola e tinha uma galera comentando sobre os pixadores do bairro, que estavam sendo procurados por pixar uma estátua da praça da Liberdade. Aí, no outro dia, o comentário era que o cara tinha se entregado e ia ter que limpar a estátua. E estava todo mundo comentando, os caras, as meninas. Então, fiquei sabendo que meu primo pixava também. Aí marcamos de dar um rolê e assim foram meus primeiros rolês. No começo era bem pelo Ibope mesmo, pra mostrar que eu existia.

Como assim, mostrar que você existia?

A gente não tinha nenhuma forma de mostrar que existia, de dar um grito. O rico mostra que existe no seu carrão importado, nas grandes empresas, fazendo propaganda pela cidade. Para nós, o que tinha era a pixação mesmo. Dar meu grito fazendo pixo, nos lugares difíceis, nos topos dos prédios. Deixar as pessoas curiosas. Como que eles subiram? Como chegaram naquele topo? Marcar minha existência na Terra, mostrar que passei por ali. Se eu morrer, daqui a 50 anos vai ter pixo meu espalhado por aí.

Como que é a disputa entre as turmas?

Hoje em dia é mais tranquilo, mas antigamente dava briga, dava confusão. Um cara que estava começando achava que teria mais fama se atropelasse (pixar por cima de outro*) ou riscasse. Antigamente tinha muita briga por isso, mas de uns 6 ou 7 anos pra cá a disputa é sadia. Acabou a treta. Agora é por quem faz nos lugares mais difíceis, mais altos, pixações maiores, os protestos mais significativos.

Estampa de camiseta da Real Grapixo

Atropelar não pode né?

Nunca pode. Antigamente era mais comum. Hoje em dia raramente você vê um grapixo que atropela uma pixação ou um grafite em cima de pixação. Antes tinha uma regra de que pixação de spray podia ser atravessada por rolinho. Mas depois de muita conversa ficou combinado que toda pixação tem que ser respeitada.

Como é sua relação com a galera da antiga, o Bá, o Cossi…?

O Bá é amigo das antigas, lá da Cabana. Ele vivia me cobrando para largar a pixação, que ia dar problema pra mim. Mas depois ele viu meus ideais e se acostumou com a ideia. Parou de me dar essas ideias de parar de pixar e, hoje, me considera pra caramba. Me considera artista e me respeita. Os grafiteiros da cidade também me respeitam pra caramba. Eu nunca fui de atropelar grafite. Grafiteiros aí igual ao Bá, ao Nilo Zack, ao Gud, ao Testa, ao Figo são todos meus amigos e sempre quiseram me aproximar pro lado do grafite. Depois que saí da prisão, o Gud até me procurou. Me ligou e disse para eu parar com isso, que já estava muito visado e que se quisesse ele me passava umas técnicas. Vários grafiteiros fizeram homenagens pra mim. E o Cossi foi um dos que me inspiraram na época. Até então só fazia com spray e comecei a ver várias pixações com os rolinho no topo dos prédio. E isso me despertou pra caramba pra fazer. E mais ou menos em 99, na época em que ele deu um tempo, eu passei a fazer as pixações de rolinho.

Qual a época do auge da pixação em BH? É essa aí dos anos 90?

Na década de 90 a galera pixava mais de spray. Tinha uns feras: Jiraia, Sereia, GG, Cossi. E a maioria fazia era na marquise mesmo. Eles tiveram a época deles, mas na minha opinião o auge mesmo veio de 1999 pra cá, quando começaram as pixações de rolinho, no topo dos prédio, usando cabos pra fazer na lateral, nos viadutos. Cada geração é uma geração. Vai mudando o estilo. Os caras para se destacarem mais tinham que pixar monumento, igreja, patrimônio, essas coisas. De 2000 pra cá vieram as pixações mais ousadas, grandonas, descendo de corda, fazendo viaduto.

As maiores referências vêm de onde? De São Paulo, da gringa?

As minhas referências vêm de São Paulo. Meu estilo é meu, mas espelhava mais as pixações de São Paulo, com umas letras maiores, mais esticadas. Agora, tem uma galera aqui de BH que se inspira mais nas coisas do Rio. Na minha opinião, as maiores inspirações de BH vieram do Rio e de São Paulo. Tinha pixadores como o Léo e o Coisa com um estilo mais carioca, com umas letrinhas mais emboladas e mais de spray. E tinha eu, o Cossi, com um estilo mais paulista. Mas nosso estilo é mineiro mesmo. De fora são só referências.

Existe esse estilo mineiro?

Claro. Umas pixações aí têm a cara mineira, nossas letras, nosso estilo mineiro. Tem gente que chega aqui e vê logo. Ou quando a gente vai pra fora. Quando é rolinho é mais estilo paulista, mas a gente tenta fazer umas letra com nossa cara, mais esticadas ou mais redondinhas.

Arquivo Pessoal

Como é a relação do pixo com a sociedade e a repressão?

Eu nunca vi o poder público preocupado em limpar os lugares pixados. Em todas vezes que fui pego pixando, nunca me fizeram limpar. Pelo que eu vi, eles só limpam monumentos mesmo. Agora, a repressão é errada né… Eles nunca procuraram saber o motivo para eu pixar. Já que é crime, deveria ter o interesse em ajudar as pessoas que são pegas pixando. Procurar saber porque elas pixam. No meu caso, quando era menor fui pego umas cinco ou seis vezes. Se eles me perguntassem o motivo, eu responderia que era para ficar famoso, ficar conhecido. Então, poderiam ter me colocado em aula de grafite para eu espalhar meus desenhos. Se eu falasse que era por adrenalina, que me colocassem em esportes, num curso de rapel, coisas assim. Da parte do poder público sempre foi repressão e nunca ajuda aos pixadores. Cesta básica, multa. Eu até mandei uma frase que era “Dos 14 aos 33 anos, quando o assunto é educação a resposta é sempre repressão”. Nunca teve o interesse nem em entender, nem em ajudar. Mas eles só se incomodam quando os caras pixam o patrimônio ou algo do Estado. Se entrar em favela, pode pixar tudo que ninguém não vai estar nem aí. É uma covardia o que eles estão fazendo, querer prender. A lei da pixação é clara: de 6 meses a um ano de detenção. E menos de quatro anos não é prisão. É serviço comunitário, essas coisas. Igual ao meu caso de 2010.

Foto: Rafael Mendonça

Então conta tudo aí sobre seu caso, que nunca te deixaram contar inteiro…

Meu caso é o seguinte, em 2009, quando comecei a fazer as frases denunciando as coisas erradas da cidade e do país, acho que isso começou a incomodar mais. Meu nome começou a ter uma visibilidade maior. E eles viram que eu não ia preso, porque eu não dava moleza para eles, não. Aí, em 2010, apareceram os meninos dos ‘Piores de Belô’. Eles pixaram o pirulito, o Detran, a estátua da Praça da Estação. Aí um polícial civil da delegacia do meio ambiente veio aqui em casa e falou: “Nós estamos atrás de uns pixadores que não tem nada a ver com você, não. Você só tem a ver porque conhece todos eles. Nós estamos vendo no Orkut e você é amigo deles todos. E veio a ordem de cima que temos que prender eles todos”. Aí eu perguntei onde é que eu entrava, já que não pixava monumento nem nada do tipo. E eles falaram que como eu já tinha pixado muito a cidade, ou entregava a turma ou eles iam me envolver no caso. Falaram que faltavam encontrar três deles. Eu falei que até conhecia mas não ia caguetar ninguém, não. Aí eles deixaram bem claro que iam entrar aqui em casa e usar meu computador pra falar com os caras através do Orkut, do MSN. Eu falei que eles não precisavam de mim, que se virassem, criassem um perfil falso e tal. Mas eles falaram que iam me envolver, que eu já tinha pixado a cidade toda. Descobriram quem eram os outros e cumpriram a promessa. Vieram aqui em casa e levaram dois computadores, celular, pen drive. Levaram para a delegacia, mas não prenderam ninguém. Um ano depois fizeram outra operação e levaram tudo de novo. Dessa vez a gente ficou preso. E o mesmo detetive do meio ambiente falou pra todo mundo e na frente da delegada: “O Goma é sujeito homem mesmo. Só tá com vocês aí porque não caguetou ninguém”. E eu falei para a delegada: “Olha aí delegada, só tô aqui por que não caguetei os meninos…” E ela respondeu que era isso mesmo, que eu tinha pixado muito a cidade e que fui envolvido porque não caguetei. Lembro até que falei que se eu fosse preso ia voltar com tudo. E eu nem estava pixando na época, estava fazendo mais grapixo, que é uma pixação colorida que eu trouxe de São paulo. A gente fazia mais com a autorização dos donos dos imóveis. Mas estava incomodando eles. No meu processo, só tinha fotos de grapixos, mas eles nem quiseram saber se eram autorizados. Aí fui preso. A delegada ainda falou depois que eu disse que ia pixar tudo: “Se você acha que isso é certo abraça a sua causa”. Aí fiquei quatro meses preso lá no Ceresp da Gameleira.

Isso foi quando?

Foi em 2010. Era uma cela para seis, mas chegou a ficar com 30. Foi doloroso. Todos os presos falavam que a gente ia rápido embora porque era só por pixação. Mas o tempo foi passando, duas semanas, um mês, dois meses, quatro meses. Foram quatro meses que não passavam por nada, meses muito doloridos, e os sete envolvidos sofreram muito mesmo. Minha pena foi até maior, de dois anos e oito meses, mas no final 2010 soltaram a gente.

Arquivo pessoal

Você saiu legal?

Sai revoltado. Alimentei ódio pra caramba no coração e me coloquei a meta de pixar todos os bairros da cidade. Eu tinha comigo que nenhum cidadão conhecia todos os bairros da cidade. Aí tive a ideia de ser o primeiro cidadão a conhecer todos os bairros, e iria provar isso pixando todos. Comprei um mapa, comecei pelo Barreiro e terminei na Leste. Foi um ano e meio de rolê, saindo com 10, 15 latas de spray. Aí terminei o rolê e resolvi fazer toda a região metropolitana, principalmente onde tinha cadeia. Acredito que na metropolitana fiz todas. Parti então para pixar todas as capitais. Cheguei a fazer seis, mas no meio disso tudo eu parei. A delegada do meio ambiente começou a ir nos locais que eu tinha pixado e pedia para o morador oferecer denúncia.

Como assim?

Ela foi na região oeste, que é região de rico, ali na Barão Homem de Melo, no Buritis, e pegou 12 pixações que eu tinha feito de rolinho com o Dan. Chegava nos estabelecimento, nas casa, nas empresas e falava: “A polícia já tem identificado esses pixadores. É só assinar esse papel aqui que eles vão ter que vir pintar.” E lá tava escrito que eu, fulano de tal, dono da empresa tal, denuncio o João Marcelo e o Daniel, porque eu sei que foram eles que pixaram o meu estabelecimento. As pessoas nem sabiam o que estavam assinando. Na audiência com o juiz, as pessoas nem sabiam o que estavam fazendo ali. Mas eu fui condenado a pagar R$ 8 mil de multa. Alegaram que era para limpar os estabelecimentos. Só que até hoje eu não paguei porque meu advogado recorreu e tá em apelação ainda. Nessa investigação também vieram aqui em casa com um mandado de busca e apreensão e nessa brincadeira levaram mais dois computador, mais dois celular, mais pen drive.

Mas a coisa apertou foi com a pixação da igrejinha da Pampulha, né?

Pois é. Quando foi agora, em 2016, teve esse caso da pixação da igreja da Pampulha. No caso, o pixador foi lá e pixou só o nome dele. Não colocou a galera que eu fazia parte, que era o BN, Best Noroeste, que quer dizer os melhor da Noroeste. É um nome só para identificar os pixadores aqui do bairro. Não é gangue, não é turma, não é quadrilha, não é nada. Porque todo pixador tem uma sigla e nós inventamos BN, de Best Noroeste, que depois virou Banca Nervosa, uma referência a uma música do ‘509 E’. Nessa época que o menino pixou lá, eu já tinha a loja aberta (a Real Grapixo, de materiais para Grapixo, grafite, camisetas e outras artes*). No dia que passou a reportagem, minha mãe falou: “João, esse trem vai sobrar pra você”. Mas o menino pixou o nome dele, Maru, e todo mundo sabe que Maru é ele, e que eu sou Goma, já sou catalogado lá. No dia seguinte, a polícia Civil veio aqui em casa e falou: “Oi Goma, beleza? Cê já sabe o que é, né?” Já tomou meu celular e mandou eu desbloquear a senha. Mexeu para ver se eu tinha o Maru nos meus contatos, mas eu não tinha. Eles tentaram achar a foto dele no meu whatsApp, não tinha. Então, falaram para eu dizer o nome do Maru, onde ele morava e mostrar uma foto dele. Eu falei que não ia fazer nada disso não, que não tinha nada a ver com isso, que meu trabalho aqui é vendas. Eu não trabalho de investigador de polícia nenhuma. Não vou fazer papel de polícia, não. Eles ficaram invocados com a resposta. Só que dessa vez eu já tinha loja e eles viram as camisas com desenho de folha de maconha. Ai falaram: “Ô véio, vou ser bem claro com você. Ou você fala quem é o Maru ou nós vamos pegar essas blusas com desenho de maconha e te levar preso por fazer apologia. Lá na delegacia quero ver se você não fala”. E eu falei assim: “Oh, eu tenho ali a decisão do STF no computador e também impressa na gaveta, eu vou te mostrar. Desenho de droga ou de qualquer outra coisa não é apologia. Apologia é camiseta escrito ‘Use droga’. Vocês não podem me levar nisso não.” Mas os caras: “Tá ligado que pra fuder você a gente pode. Aí você prova lá pro juiz que não é”. E começou essa ladainha toda. Eu peguei as camisa e as meias e falei: “Então vocês podem me levar, porque desse jeito eu não vou fazer. Eu não vou falar, não. Eu conheço ele, mas não sei o nome e nem onde mora”.

Foto: Rafael Mendonça

Então, te levaram preso para forçar uma delação?

Isso. Me levaram para a delegacia do bairro Ouro Preto e começaram a me pôr pressão. Me colocaram na cela e falaram que não iam me dar comida se eu não falasse quem era o Maru. Minha mãe ligou para o Felipe, advogado, que no mesmo dia me tirou. No outro dia, eles mandaram uma intimação para mim, para o Frek e para a mãe do Frek. E na delegacia começaram a pôr pressão na gente, falando que se a gente não caguetasse iam envolver a gente naquela pixação. Nós falamos que o máximo que a gente podia fazer era conversar com o Maru para ele se entregar. E foi o que aconteceu. 

E o Maru se apresentou?

É, ele foi lá e se apresentou por livre e espontânea vontade. Mas não foi preso na hora. Aconteceu, então, a operação. Foram na casa do Maru e prenderam ele. No mesmo dia pularam na casa do Frek e prenderam ele. Foram na minha loja e levaram uns R$ 40 mil reais de mercadoria, todos os meus sprays, todas as minhas roupas. Coisas de outras pessoas que deixaram na minha loja para vender por consignação, que não tinha desenho relacionado com nada, produtos de tabacaria com nota fiscal, tinta, rolinho, bico, coisas que só duas lojas aqui em Belo Horizonte vendem. No outro dia eu puxei no TJMG que constava o meu nome e do Frek na prisão do Maru. Fiquei perguntando como que eles conseguiram me envolver.

E como conseguiram?

Eu achava que eles não iriam conseguir manter o Maru preso, mesmo em se tratando de monumento. A lei é clara: de seis meses a um ano, mesmo tendo sido grave porque se tratava de patrimônio histórico. No máximo um ano e dava para converter em pena alternativa. Mas, envolvendo três pessoas dá formação de quadrilha e organização criminosa. Pegaram uma foto de pixação nossa com umas frases. A minha, que eu tinha postado no facebook, era assim: “Pixação é uma verdadeira street art que dá voz aos oprimidos. Liberdade GG”. Não tem nada de apologia, mas colocaram como apologia ao crime. Aí eu, o Maru e o Frek respondemos a esse processo, que ainda envolveu minha loja. Falaram que eu vendo spray para de menor, que eu tinha que ter um cadastro ambiental dos clientes. Eu não entendi.

E a coisa só piorou, né?

Pois é. Eu pensei que era um cadastro sobre sprays. Aí eu postei no facebook, “pessoal, quem já comprou na loja, ou tabacaria ou roupa, faz uma declaração falando que já comprou isso ou aquilo”. Aí o promotor falou que tava vendo nas declarações que meus clientes têm tudo passagem por tráfico, homicídio, pixação. Mas eu falei: “Ô promotor, eu não posso pedir antecedente criminal para os meus cliente, não. Se for assim, eu não posso nem ir à padaria comprar um pão, porque eu tenho antecedente criminal também”. Eu perguntei porque ele não colocou um tanto de gente que compra lá e é professor, advogado, policial, porque tem gente de todo tipo. Eu não posso me responsabilizar por isso não, porque senão os donos de loja de arma têm que se responsabilizar pelos homicídios das armas que eles vendem. Os donos de farmácia têm que se responsabilizar pelo remédio da pessoa que suicida, os donos de bar têm que se responsabilizar pela bebida que eles vendem e as pessoa vão de carro e matam os outros. A minha obrigação é pedir identidade para ver se é de menor.

 

Estampa de camiseta da Real Grapixo

A Real Grapixo era negócio informal?

Nada. A minha loja funciona certinho, tem CNPJ, tem nota fiscal de tudo. Quando alguém compra material para escola, eu emito a nota fiscal para a escola ressarcir. Mesmo assim eu tô sendo julgado por apologia. Falaram que as camisas com a reprodução da pixação da galera é apologia, mas com a folha de maconha não é. Acredito, então, que com pixação também não é. Apologia é “pixe a cidade, faça pixação, seja pixador”, alguma coisa incentivando. As (camisetas com imagens) de pixação são coisas que eu via na cidade. Fotografava os cenários, as pixações dos caras, e colocava nas camisetas. É nisso que estou sendo indiciado. E também por não ter cadastro ambiental. Quando a pessoa vem comprar spray, tenho que pegar CPF, telefone e endereço. Mas nenhum órgão veio me notificar, me informar que eu tinha que ter isso. Então, cabia uma notificação verbal primeiro e não me processar.

Parece que eles querem te pegar por um detalhe burocrático…

A única coisa, assim, que tava em erro era não ter o cadastro. O meu advogado perguntou para todas as testemunhas: “Vocês compram em outros lugares, em outros depósitos, e alguém pede esse cadastro aí? E o pessoal respondeu que não, ninguém. Não sou só eu que não faz o cadastro. Acredito que não pode dar nada.

A perseguição é clara né?

Tá clara. Tem alguma coisa grande aí e eu acredito que é por causa das frases. Eu comecei por causa da fama, depois eu viciei mesmo porque tava gostando. Depois foi por causa de revolta, da prisão injusta. E depois para denunciar as injustiças da cidade. Eu acredito que a pixação incomoda porque é o único meio de protesto, de dar um grito para as pessoas que não têm voz, para os injustiçados.

Você começou com as frases a pouco tempo?

Foi em 2010 que eu comecei a denunciar. Já saí denunciando em frente ao fórum com a frase “A justiça prende o pé rapado e solta o deputado”. Depois comecei a protestar contra os mensaleiro. Fui fazendo vários protestos. Fui ao João XXIII, na época que os médicos estavam em greve e pus uma frase lá também: “Injustiça, desrespeito, os médicos ausentes. O filho do pobre no Brasil não é gente”. Fui em frente à Polícia Federal, lá no Gutierrez, onde os mensaleiro iam se entregar, e pus uma: “Quando for roubar dinheiro público, vê se não esquece que na sua conta tem a honra de um homem envergonhado ao ver seu filho passando fome”. Pus embaixo: “Ordem, progresso, perdão. Na terra onde quem rouba muito não tem punição”. Saiu em vários jornais. Fiz algumas pixações na Pedreira Prado Lopes, denunciando o avanço do crack na capital. A última que eu fiz, que acho que incomodou, foi sobre a Samarco: “Prender pixador é fácil, quero ver prender o presidente da Samarco”. E alguém foi lá, tirou foto e publicou nas redes sociais. Deu uma repercussão gigante, o Brasil inteiro compartilhando. Eles começaram a ver que a pixação tava tipo incomodando, denunciando os podres da sociedade.

 

Arquivo Pessoal

Você acha que a repressão aumentou depois das frases políticas?

É como minha irmã fala. Só se eu fizer parte da política, porque denunciando não dá certo não. Deu e não deu, porque as pessoas viram que as frases tinham lógica, que a gente tava cobrando e tal, mas aí o Lacerda começou a ver que começaram as várias frases “Fora Lacerda”. Isso incomodou e eles viram que era um único grito. Porque, tipo assim, a gente vai num hospital com um filho, com uma mãe e não tem atendimento adequado. Onde, então, você vai protestar, reivindicar seus direitos? O espaço que a gente arruma é nos muros, para colocar nossa crítica e lutar pelos nossos direitos através dos muros.

Dessa última vez você ficou quanto tempo preso?

Dessa vez faltaram 8 dias para inteirar 8 mês.

E como foi, conta essa passagem?

Essa passagem, espiritualmente e emocionalmente, foi mais tranquila, porque eu já sabia que ia ficar muito tempo. Acreditava que ia ficar até um ano, porque tem um caso aí do GG e do menino da PE, que pixaram a Biblioteca Pública. E a diretora da biblioteca falou que não teve nenhum dano, porque limpou com bucha e sabão, porque era uma estátua de vidro. E mesmo com a diretora falando isso, eles armaram para ele uma condenação de 8 anos e seis meses. Nem os neguinhos que praticam 157, roubo a mão armada, assalto de banco, e que praticam crimes que geram prejuízo material e psicológico na pessoa que é roubada, é punido assim. O cara é gordão, acho que pesa uns 200 quilos, tem problema de diabete, precisa atendimento especial, e ao invés de ajudar, tacaram ele numa prisão por causa de uma pixação que depois de duas horas foi limpa. Acho injustiça.

Mas, voltando à sua passagem…

No meu caso eles vieram aqui, me prenderam e me levaram para a Delegacia do Meio Ambiente. Eu fiquei lá das seis e meia da manhã até sete da noite, esperando alguma unidade prisional ter espaço. Iam me colocar lá na Delegacia de Mulheres até achar. Quando foi de noite acharam uma vaga no Ceresp, que funciona como triagem. Lá, numa cela para seis presos, fiquei com 30, 32, de novo. Fiquei lá dois meses e meio, na esperança de ir embora. Me mandaram para a Dutra Ladeira, em Neves. É só condenado de 20, 30 anos, só nego cabuloso. Cheguei lá, graças a Deus, com a minha fama de pixação. Eu sou um cara querido e respeitado aí na cidade, porque além de ser pixador sou honesto, tranquilo, não me envolvo com o crime. Todo mundo sabe da minha índole. Cheguei lá e não sofri essas coisas ruins. Lá todo mundo me tratava bem, mandava coisas para mim, trocava ideia de boa. Sofri mais porque fecharam a minha loja, o meu sonho que eu construí certinho, sem nenhuma irregularidade. Não tem nada roubado, nunca comprei nada sem nota fiscal. Enquanto eu estive preso, por 8 meses, e minha loja fechada, e eu sentia falta pra caramba de trabalhar, porque eu sou acostumado a trabalhar. Acordo cedo, trabalho até tarde. E também triste por causa da minha família, que estava sofrendo. Vendo minha mãe passar constrangimento, tendo que fazer comida até duas horas da manhã. Nem dormia e as quatro da manhã já tava na fila (de visita na Dutra Ladeira). Minha mulher tendo que ir lá também, sofrendo pra caramba. Ela foi lado a lado comigo, foi em todas as visitas, nunca faltou nenhuma e quando não estava me visitando, estava nas ruas fazendo corre pra mim de advogados, de roupas minhas pra vender. Foi muito guerreira e me ajudou demais. E isso me deixava feliz e triste ao mesmo tempo tendo, de ter visto ela passar por tudo isso sem a minha ajuda.

 

Foto: Rafael Mendonça

Abalou a relação?

Eu e ela já tava morando junto naquela época e ela teve que voltar para a casa dos pais. Eu fiquei com medo do meu sogro e minha sogra ficarem contra mim, mas graças a Deus eles entenderam que era injustiça e me apoiaram. Ficaram lado a lado comigo. Eu sofri muito com a prisão. Quando os presos aprontavam, e os agentes começavam a agir e falavam assim: “Você é inocente, arreda pra cá”, e faziam tudo que tinham que fazer. Chegavam tocando bomba, spray de pimenta. Toda vez que acontecia isso aí, eu passava mal, perdia a respiração, com risco até de morrer. Graças à ajuda de muita gente eu participei de um projeto de grafite lá dentro. Um rapaz aí, o Augusto, teve a ideia de ir lá e oferecer para o diretor isso aí, para eu participar, junto com o povo dos direitos humanos. Eu participei do grafite dentro da cadeia, mas sofri pra caramba. Sabia que tava preso inocente, por um crime que não cometi.

Todo preso fala que o tempo passa devagar…

É difícil. O tempo foi passando e eu vendo vários ladrões e traficantes indo para a rua, e sendo preso de novo, e voltano pra cadeia. Eles falavam: “Ô Goma, você está aí até hoje? Estão fudendo memo com você”.

Como você saiu?

Agora no fim do ano, faltando dois dias para o Fórum entrar de recesso, o Felipe, meu advogado, conseguiu um Habeas Corpus lá em Brasília. Eu saí no direito de responder em liberdade, mas colocaram a tornozeleira em mim. É uma tornozeleira com um regime diferente. Todo mundo que eu conheço que usa tornozeleira eletrônica, vários bandido que eu conheço aí, com várias passagens criminosas, têm direito de ficar em liberdade das seis da manhã às dez da noite. Já o meu regime é fechado, eu não posso sair da minha casa. Quando o Fórum voltar e eu conseguir trabalhar de carteira assinada, eles vão me liberar, tipo de seis às dez. Quer dizer, no meu ponto de vista é uma injustiça, porque eles sabem que se o juiz analisar os fatos direito, eu tenho que ser absolvido porque não tenho envolvimento nenhum. Mas se eu for condenado, o tempo que eu fiquei lá já vai pagar a sentença. Mas teve o lado bom, porque eu tava preso 8 meses num lugar de sofrimento e tive oportunidade de passar o Natal e a virada do ano com a minha família.

 

Foto: Rafael Mendonça

Foi dia 18 (de dezembro) que te soltaram?

Na verdade, se não me engano, foi dia 20. O alvará foi expedido numa quinta-feira à noite. Entregaram o alvará, mas não me tiraram de lá nem sexta, nem sábado, porque a escrivã errou alguma coisa. Então meu advogado e minha família foram lá na segunda e me tiraram. Fiquei felizão. Vim na viatura para colocar a tornozeleira na rua Além Paraíba. Chegando lá, o agente demorou pra caramba e voltou falando com o outro agente que deu ruim, que faltava um documento. Me levaram de volta para a Dutra Ladeira e eu dormi lá mais um dia. Então, na terça-feira resolveram as coisas mais ou menos, me levaram e colocaram a tornozeleira.

Mas não pode sair na rua…

Desde então eu tô com ela (tornozeleira) em regime fechado. Não posso sair de casa e minha loja (que fica anexa à residência) tá fechada e sem meus materiais. Vou esperar o Maru sair pra entrar com o pedido de restituição, senão o advogado falou que vai atrasar o processo para a saída dele. Eu estou sem poder trabalhar porque tô com a loja sem mercadoria. Então, estou precisando sair para arrumar emprego, para ganhar dinheiro e comprar mercadoria. Eu vou ter que esperar dia 10 para alegar isso pro juiz, pra ver se ele me libera. Mas, enquanto isso, estou procurando emprego na internet. Já até consegui uma empresa de segurança eletrônica e mandei o meu currículo, expliquei minha situação, mas devido a isso não sei se eles vão me fichar.

 

Homenagem ao Goma feito por Caveirinha e Stephanie Lorraine

Como é que você viu toda a mobilização pela sua liberdade?

Isso aí foi a parte boa da parte triste, porque eu preso lá e minha namorada falava tudo que tava acontecendo. A princípio a galera se uniu na praça Raul Soares. Fizeram um protesto. Recebi carta da Alemanha, a galera de Berlim fez a matéria também, a Suíça também. Eu vi que a coisa expandiu tipo mundialmente. Eu vi cantores famosos também abraçando a causa. No show do Criolo na praça da Estação, ele entrou com uma camisa escrito “Liberdade Goma”, e falou da minha pessoa, que estava preso injustamente. Teve o Eduardo, do Facção Central, que mandou uma carta para mim. Foi gratificante pra caramba. Eu pude notar que não era só eu que sabia que eu era uma pessoa boa, querida e honesta. Todo mundo compreende, vê no meu dia a dia que eu gosto de ajudar as pessoas. Hoje eu vejo que sou famoso. Assim, tem pessoas que gostam de mim, tem os meus seguidores do facebook, acho que uns 12 mil. Eu começo a usar isso para uma parte boa, fazendo projetos de ação social. O que faço é pedir: preciso de 10 cabeleireiro de graça, preciso de um pula-pula, de piscina de bolinha, de palhaço, de alimento e tal. E fui conseguindo tudo. A minha meta agora é fazer uma ação social todo Dia das Crianças e Natal. Ir numas ocupações e pegar umas cartas de criança com o que eles querem ganhar. Aí vou postar nas rede social para as pessoa poderem adotar as criança como Papai Noel, para dar presente. Todo ano eu quero fazer isso e participar de outras ação social. Teve também grafiteiro que desenhou o meu rosto, teve pixador que fez a frase “Liberdade Goma”.

Foram muitos protestos, né?

Teve protesto tipo passeata, do Centro até a promotoria; teve os protesto na internet, todo mundo falando do caso. O engraçado é que o promotor que mandou prender a gente é o mesmo da Samarco, que é o maior desastre ambiental da história do mundo. Morreram várias pessoas, a história de várias famílias foi destruída, cidades… e até hoje ninguém foi preso. E uma simples pixação numa igrejinha mobilizou isso tudo: prisões, prejuízo na minha loja. Também fizeram um vídeo, que se chama “Habeas Corpus”, que é a galera toda pedindo a minha liberdade, falando que era uma injustiça. E foram várias pessoas que ajudaram, a Ludmila, um jornalista, o Yuka do Rappa, um professor de uma faculdade do Rio de Janeiro, um empresário e músico lá de São Paulo, a Áurea, a vereadora mais votada de Belo Horizonte, tudo me apoiando, lutando pela minha causa. Eu chorava quando via esse reconhecimento por tudo que eu sempre fui e a importância que eu tinha perante a cidade na qual vivo.

 

Homenagem feita pelo Gud

De onde você acha que vem esse reconhecimento?

Eu acho que a minha caminhada não foi em vão. Lutei por direitos que nem eram meus, contra o metrô lotado, o preço do ônibus, pela tarifa zero. Eu sempre tive moradia própria, mas lutei pelas pessoas que não têm moradia e vivem em ocupações. Hoje em dia eu não tenho, mas sempre tive plano de saúde, e lutei pelo direito de quem não tinha e dependia da saúde pública. Nunca usei drogas, mas lutei pelos direitos de quem tava no crack. Cheguei a pensar, será que valeu a pena? Depois dessa galera toda na mobilização eu fiquei felizão e vi que valeu a pena e que a luta não foi em vão, não.

E o futuro, você tá pronto para botar para quebrar? Finalizar essa história da loja?

Eu entrei de novo revoltado. Falei: pô aqui no Brasil eles dão mais valor a um patrimônio do que a uma vida! A gente vê os casos de homicídios aí, em que não se resolve nada, passa batido. Quando o assunto é algum patrimônio, resolve rápido. Eu dou um exemplo: se um carro passar na Praça Sete e atropelar um morador de rua e fugir, ninguém vai investigar nada. Mas se você passar de carro e triscar no Pirulito, aí tem investigação de tudo até achar e dar uma multa. Eu recebi uma carta de uma irmã falando “João, para de bater de frente com o sistema, porque você está batendo em ponta de faca e vai ficar preso direto”. Essas palavras foram me incomodando.

Estampa de camiseta da Real Grapixo

Para você, pixação é crime?

Olha, lá dentro da prisão eu não tinha nada para fazer e, então, ficava lendo a Bíblia. E li que todas leis que existem é Deus que permitiu ter. Eu sempre tive na minha cabeça que pixação não é crime, que é um modo de expressão. Mas como lá (na Bíblia) tá falando que qualquer lei imposta pela sociedade e pelas autoridades foi Deus que permitiu, então, na minha cabeça, eu tava errado. Tive um pensamento diferente, que eu vou continuar a luta denunciando as coisas erradas, lutando pelas pessoa que estão em prejuízo, que tão desfavoráveis, mas vai ser de outra forma. Eu não vou continuar na pixação, não. Não por causa da prisão, senão não existiria mais roubo, tráfico. Mas por causa de uma coisa pessoal mesmo. Além disso, existem as pessoa que me reconhecem, mas também aquelas que enquanto eu tô falando dos direitos delas, elas tão dormindo. E quando eu apareço nessas reportagens, elas falam: “Pois é, tem que ir preso mesmo, tem que morrer”. A maioria da sociedade é alienada pela televisão, pelo que a Globo fala e tal. Quer dizer, eu tô falando por direitos que nem são meus e as pessoas estão me esculhambando.

Então, acabou o pixo do Goma?

Vou procurar outras formas. Quando eu quiser protestar com frase, chego no dono do imóvel, explico a situação, faço um grafite lá com meu nome. Porque eu vou continuar com meu nome, Goma, mas não vou continuar a pixação, não. Também eu aprendi muita coisa, que eu tô colocando em risco a minha integridade física. Já tomei vários tiros. Morador que não sabe o que você tá fazendo, acha que é ladrão e dá tiro. Tem várias casa de bandido e de polícia que pixei também.

O que você leva de bom dessa história?

Tem muita coisa boa que eu vou guardar, muita história, muito amigo. Para onde eu quiser ir no Brasil eu vou através da pixação, dos amigo, das amizade que eu fiz. Tem o lado bom e o ruim também. E uma coisa que eu não quero é servir de exemplo para o meu filho, ou para uma pessoa que tá começando agora. Porque eu tô vivo é graças a Deus, porque eu já subi em vários lugares em que eu poderia ter morrido. Já pixei casa de polícia e de bandido que poderiam ter me matado. E tem também o pixador que fica com inveja, quereno treta à toa. Então, tem muita coisa que eu vou largar por causa disso, e não por causa da repressão do Estado. Vou continuar a mesma luta com outros meios para denunciar.

Quem ainda está preso?

No caso, só eu e o Maru. E o Frek que tá foragido até hoje. Ele conseguiu o benefício da tornozeleira antes do que eu, em Brasília. Mas tinha mais quatro mandados contra ele. O advogado dele pesquisou e descobriu os mandados e ele não se entregou. Ele se encontra foragido até hoje. E o Maru se encontra preso até hoje. Parece que ele vai esperar a sentença preso. Por causa de uma pixação que o cara fez, eu fiquei preso oito meses. E ele já está nove meses.

Qual a sua avaliação da pixação da igrejinha?

Eu, o Goma, nunca pixei nenhuma igreja, nenhum monumento, nenhum patrimônio. Sempre respeitei. Monumento, patrimônio, para mim não vale nada. Quando é de lata, é uma lata, quando é de cimento, é um cimento, não tem importância nenhuma porque não tem nada que fez bem para mim ali. Igual quando pixaram o Cristo. Para mim, aquilo ali é uma estátua de cimento, não tem valor. Só que para algumas pessoas aquilo é o Deus e eu tenho que respeitar a fé dos outros. Para mim, se tiver valor para alguma pessoa, nem que seja só para a prefeitura, tem que respeitar.

O problema é que uma parede de cimento é de cimento, e a lateral da igrejinha era um painel.

Mas eu sempre respeitei igreja. Eu era evangélico e, mesmo afastado, acho que tem que respeitar por ser uma coisa que mexe com a fé dos outros. A igreja envolve tudo, a fé das pessoas, o patrimônio. Era obra do Niemeyer, um cara já falecido, e envolve também a herança do Portinari e dos outros (a lateral da Igreja da Pampulha que foi pixada é um mosaico em pastilhas do artista Paulo Werneck, um dos maiores nomes do muralismo modernista brasileiro*). Sempre tive comigo respeitar qualquer tipo de arte, porque eu também considero pixação uma arte. Eu luto pelo direito de ninguém atropelar a minha pixação, seja com desenho, seja com outra pixação. E o que quero para mim, quero para os outros também. Eu achei um ato infeliz o dele. Mas acho que ele não teve essa consciência. Foi tipo “vou pixar a igrejinha da Pampulha, vou passar para o mundo inteiro”. A ideia era essa, não era pixar em cima da obra dos outros e nem abalar a fé dos outros. Foi uma coisa de querer reconhecimento e não de agredir ninguém. Eu não faria, mas eu respeito a atitude dele. Se teve na cabeça de ir pixar lá, aí é ele. Mas até os pixadores foram contra a ação dele. Uma, porque foi num trem histórico, e outra porque envolveu a gente. Pra galera comprar spray, agora tá vindo nas latinhas o desenho do povo limpando a igrejinha. E tão falando que o cadastro é por causa daquela pixação. Um trem que ele queria pra fama, pra ganhar respeito da sociedade, foi contra e atrapalhou a venda de spray.

Não tá rolando uma solidariedade por ele estar preso, não?

A solidariedade é por ele tá preso por causa da pixação, que é uma injustiça, e não pela atitude dele. Ninguém tá aprovando a atitude dele, não. Até no meio da arte ele deu mole, fez em cima de outra arte e de um cara que não tem direito de correr atrás porque é falecido. Igual na pixação. Se o cara atropelar a pixação do cara que já morreu, todo mundo fica nervoso, o cara não tá aí pra correr atrás, pra pixar por cima de novo ou tampar.

Homenagem feita por Testa

Você não atropela nunca?

A vida inteira só atropelei um grafite, porque eu fiz um grapixo lá na avenida Amazonas e um cara atropelou. Apareceu outro grafite lá, um desenho bonitinho, e eu liguei pro cara e falei: “Ô mano, cê tá doido, cê atropelou meu grafite”. E ele falou que não foi ele, foi um cara que tava lá, artista plástico, e não sabia que não podia, pediu desculpa. Eu perguntei para ele se eu ia ficar no preju e ele falou que ia arrumar um muro, um rolinho, uma tinta, e a gente ia fazer uma junção. Eu fazia um grafite e ele os grafitinhos em volta, porque ele faz tipo uns desenho de DNA. Ficou só na promessa, ele nunca me ligou. Aí eu fui preso em 2010 e ele foi lá e refez o grafite dele na Amazonas, não mandou nem um salve e nem me convidou. Aí eu saí, já entrei em contato com esse cara. Já liguei falando pra ele não levar a mal não, que eu ia lá atropelar o grafitinho dele e se ele atropelasse o meu, que eu ia atropelar os grafite dele todos. Não é treta não, é se respeitar. Aí eu fui lá e fiz um grafite Goma, com rolinho. Tirando isso aí, meu relacionamento com os grafiteiros é de boa, é um respeitando o outro e a maioria dos grafiteiro da cidade são meus amigos.

Você tá sentindo falta do pixo?

Sinto falta. Mesmo tendo parado, não tem como esconder que eu amo a pixação. Gosto das coisas que eu passo com a pixação. Vai ficar na minha memória para sempre, várias amizades, vários momentos que eu corri risco de vida. No dia que eu saí, eu vim no carro olhando: aquela é nova, nó aquela tá ali até hoje? Minha mãe endoidou, me olhou e falou: “João Marcelo, tira isso da sua cabeça. Você tá saindo da prisão”. Mas gostar, não tem como eu tirar não, faz parte da minha vida inteira. Eu comecei com 16 anos, mas comecei a gostar quando tinha 12, 13 anos. Foram uns 22, 23 anos gostando da parada, sabe. Eu acredito que não vai sair da minha cabeça, a pixação. Vou procurar fazer pixação quando for uma parada mais tranquila, sem correr risco. Vou continuar amando a pixação, que faz parte da minha mente e do meu público, da minha loja. Eu vou voltar com a loja, dedicar bastante, vou continuar vendendo tinta. Só que desta vez vou fazer o tal cadastro ambiental que precisa, vou procurar saber se as camisa com pixação são crime mesmo. Se não for, vou dar continuidade. A pixação é também uma forma de chamar os clientes. Então, é isso aí, a pixação vai continuar fazendo parte da minha vida, mas eu não vou praticar mais não. Não por causa da repressão, mas por causa da minha integridade física. Mesmo porque eu não quero correr risco de morrer, porque já perdi muito pixador que tomou tiro, caiu dos lugares. Eu já tive uma vida na pixação. Era muito dedicado, muito viciado, atrapalhava um pouco. Agora eu quero dedicar mais à minha loja, deixar uma herança boa pro meu filho, para o sustento da minha família, minha mulher, meu filho.

* Notas de O Beltrano