Tolstói: o homem nunca mais se viu do mesmo jeito
por André Nigri
Será possível contar a alguém aquilo que realmente se sente? Não, assim que o homem comunica seu sentimento ele já é outro. O que foi dito tornou-se instantaneamente passado e se é incapaz de reproduzi-lo, senão como uma pálida imitação. Nesses termos, então, não passa o homem de um farsante, um compulsivo mentiroso, condenado a deslizar sobre um caminho pavimentado e raso, sem jamais alcançar a profundidade onde supostamente residem suas genuínas emoções? Não, a voz que disse ontem ser Deus o senhor do Universo é a mesma que sentencia hoje Sua inexistência, e as duas afirmações exprimem uma autêntica convicção.
Tolstói. Foi ele o primeiro a examinar a fundo o mistério do homem contraditório e incansável em sua busca pela verdade.
Alcançou essa proeza não por que desconfiasse de sua inexistência. Ao contrário, durante toda a sua longa vida (1828-1910) esteve convencido de que estava ao lado da verdade: tornou-se um moralista, um reformador, um pedagogo e chegou a romper com a Igreja Ortodoxa para fundar um cristianismo à sua maneira, pastoreando um imenso rebanho de obedientes discípulos. Mas, para nossa sorte, Tolstói foi acima de tudo romancista.
Romancista: o homem que se oculta atrás de suas ideias, de seus personagens, de seus sentimentos.
“Descobri que uma narrativa deixa uma impressão mais profunda quando não se percebe de que lado está o autor”, escreveu ele. Descobrimento. Uma longa e perseverante jornada antes da revelação. Enquanto escrevia Anna Kariênina, Tolstói, a certa altura, percebeu que desenhava um retrato maniqueísta da personagem. Rasgou as páginas e escreveu escondendo suas próprias opiniões.
Assim lemos e relemos o longo romance e não temos certeza se Anna é uma adúltera leviana e uma esposa pérfida ou uma mulher emancipada, à frente do seu tempo, que rompeu as severas regras morais e sociais para ser feliz ao lado de Vrónski. E Kariênin? Seria ele apenas um marido traído, uma vítima indefesa de uma mulher roída pelo desejo? Mas ele também não é fraco, frio, imperturbável e cínico? Afinal, o que ele deseja é apenas manter sua reputação ao abrigo dos olhos da sociedade. Quem está agindo mal? Quem é o mocinho, quem é o vilão? E Liévin, o probo proprietário de terras que ama profundamente Kitty e que é unanimemente considerado o alter ego do autor? Não é ele orgulhoso, não esnoba seus semelhantes, julgando-se o dono da verdade? Não temos certeza.
O nascimento de um romance
Antes de escrever Anna Kariênina, Tolstói reunia documentos e livros sobre os anos do reinado do csar Pedro, o grande (1682-1725). Sua intenção era traçar um amplo painel daquele período histórico que abarcava dois séculos. Após inúmeras tentativas, abandonou o projeto.
Um dia, em 1873, lembrou-se de um fato ocorrido há um ano. A mulher de um vizinho, que a traiu e a abandonou para viver com a preceptora alemã de seus filhos, após redigir um bilhete ao marido, jogou-se debaixo de um vagão. Assim nasceu o romance.
Guerra e Paz. Tolstói começou a escrevê-lo com a intenção de examinar o movimento dezembrista da segunda década do século 19. Para isso, no entanto, achou necessário recuar até o início das guerras napoleônicas e o romance termina apenas com a vaga sugestão de que o conde Bezukhóv foi a Moscou para uma reunião política clandestina.
Em quase duas mil e quinhentas páginas divididas em quatro tomos, acompanhamos a vida de centenas de personagens, muitos inventados, outros descolados da história como Napoleão, o tzar Alexandre, o general Kutúzov. Eles desfilam por salões aristocráticos, casernas, em carruagens pelas ruas de Petersburgo e Moscou, dachas, campos de batalha, em Austerlitz e Borodinó. É verdade, o conde Pierre Bezukhóv e o príncipe Andrei Bolkónski atravessam todo o livro e os vemos mudar de ideia, trocar de amores, ganhar e perder a fé. Eles são sacudidos pelo tremor da história que, pela primeira vez, atingiu toda a Europa e invadiu a intimidade de suas vidas.
O vasto ensaio sobre a filosofia da história em Guerra e Paz até hoje é alvo de controvérsias e desentendimentos. Flaubert ficou encantado com o romance, mas condenou o trecho. Canetti, anos depois, com uma famosa frase – “ainda prefiro Deus a Tolstói” -, escreveu: “No fundo, como todas as pessoas que são contra a mentira, ele era contra a transformação.” E mais, considerou-o entediante! Sim, até os gigantes às vezes enxergam mal…
No ensaio, que só faz sentido no corpo do romance, Tolstói defende que a guerra é regida por sua própria lógica e não obedece à vontade de soberanos e comandantes. Ela é terrível, não faz sentido, todos vão para o campo de batalha cegamente. Os combatentes que voltam mentem, assim como mentimos acerca do que nos aconteceu no passado, aumentando ou distorcendo os acontecimentos, para torná-los mais singulares, mais espetaculares.
Na novela Khadji-Murát, a pequena e última joia escrita pelo autor, o soldado Avdiéiev é atingido por uma bala durante uma escaramuça entre uma patrulha russa e um grupo de rebeldes chechenos. O exército imperial envia uma carta comunicando a notícia à família. Sua morte é glorificada, enaltecida. Ele tombou defendendo a pátria, a fé “verdadeira” contra os infiéis muçulmanos.
Talvez sem querer e de forma quase imperceptível, como todo artista que revoluciona a arte, Liev Tolstói descobriu que a história da vida privada desvenda e ilumina a esfera pública e esta àquela como em uma câmera de espelhos cujas imagens refletidas apenas revelam uma fugidia e irrepetível verdade.
SERVIÇO
Guerra e Paz, Liev Tolstói, tradução de Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2011
Anna Kariênina, Liev Tolstói, tradução de Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2005
Khadji-Murát, Liev Tolstói, tradução de Boris Schnaiderman, Cultrix, 1986
Literatura
André Nigri
Jornalista, crítico literário e leitor compulsivo.