Ninguém é, nem continua, mais radical que Nelson Cavaquinho
Por Rafael Mendonça

RE Introdução
Este não é um texto inédito, saiu quando o disco foi lançado no jornal “O Tempo”, mas replico aqui. Replico porque é um texto que trata de um disco que, no meio do turbilhão do ano passado, e muito por não circular na internet de forma “legal” e gratuita, ficou meio escondido. E o disco é um petardo. Ao ser reouvido, ele fica ainda mais intenso e imprescindível. Nelson, Romulo, os arranjos e tudo que aconteceu no ano tornam sua audição ainda mais urgente e vigorosa. As desilusões do Nelson se misturam à vida e transformam tudo em um caldo de passado e presente. Em versos como os de “História de um Valente”, vem uma dose de realidade. Que depois de tudo que ocorreu nesse ano de lançamento, os versos fazem um turbilhão e rasgam como se tivessem sido feitos dois meses atrás, e não escritos há décadas e lançados pelo Romulo há, praticamente, um ano. Voltem, descubram este que é um dos grandes álbuns da música brasileira.
O TEXTO
O ato de fazer releituras de ícones da música pode ser classificado como “mexer em vespeiro”. E é em um vespeiro gigante chamado Nelson Cavaquinho que o cantor paulistano Romulo Fróes se aventura para lançar seu novo trabalho. Intitulado “Rei Vadio”, é seu primeiro álbum exclusivamente como intérprete.O disco cria uma simbiose com a obra do compositor carioca e coloca toda uma roupa nova em 14 canções que aproximam sentimentos musicais tão variados em faixas que podem ser consideradas ícones. São músicas que tocam a alma.
Algumas delas que fazem parte do imaginário da canção popular.
Nelson Cavaquinho é um dos mais importantes compositores do samba e da música brasileira. “Vestir” suas músicas com timbres, ruídos e sons que nos remetam ao asfalto, ao contemporâneo, transforma esse sambista mangueirense em uma entidade viva no século XXI. Um ser que trafega pelo Arouche, Bixiga ou o baixo centro de São Paulo ou Belo Horizonte sem nunca ter deixado a Lapa ou a sua Mangueira.
“Porque como nenhum outro artista dos muitos que me influenciam, tenho uma identificação tão profunda com o universo que as canções de Nelson Cavaquinho representam, que é esse lugar mais rebaixado, menos luminoso, de um mundo menos eufórico e mais consciente de seus problemas e obstáculos”, conta Fróes, que com tantos pontos de interseção entre eles mergulha ainda mais fundo na obra e volta com belas pérolas.Não posso afirmar com 100% de certeza que os puristas ficarão satisfeitos. Perguntado se essa aceitação o preocupava, Romulo é sucinto: “Absolutamente nenhuma”.
E, convenhamos, o mundo seria um tanto menos criativo se as decisões estéticas ficassem sempre nas mãos dos puristas e conservadores. Sempre foi necessário para a evolução da música que transgressões ocorressem. E, certamente, o disco novo de Fróes transgride certas convenções, principalmente no terreno do samba, que tantos consideram intocável.Pode-se ver isso ao analisar sua história. São poucos discos de 1917, ano da gravação de “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba gravado, até 2016, que ousaram romper com as tradições do ritmo brasileiro. Um “Nervos de Aço” do Paulinho da Viola aqui, algumas composições de João Bosco ali, Jorge Ben até 1976, um Radamés Gnattali e um maestro Gaya acolá e mais algumas coisas além disso, mas nada muito numeroso.
Fróes transforma as músicas de Nelson Cavaquinho em arranjos que respiram a modernidade musical. Característica essa já absorvida para quem conhece seus cinco discos anteriores. Ou os três discos do (grupo? projeto?) Passo Torto, que também trazem com muita força e originalidade essa “desconstrução” de conceitos da música brasileira, onde na verdade eles estão é inventando novos conceitos.Elementos do mais puro free jazz se misturam com a cuíca e a avant-garde. O no wave e o pós-punk entram de cabeça nos tamborins e versos tão marcantes do compositor frequentador assíduo de bares cariocas. Sem em nenhum momento soar forçado. Sem em nenhum momento soar como se não fosse a coisa mais natural do mundo.E essa impressão não é fútil, é uma busca.
“Primeiro é preciso dizer que não se trata de uma desconstrução vazia, para gerar falsas polêmicas. É, sim, um desejo profundo e verdadeiro de mexer com a canção brasileira”, comenta Romulo. É um trabalho pensado e desenvolvido pela turma. Sobre onde tudo isso pode chegar, Fróes afirma: “Não temos a menor ideia de onde isso chegará, até porque não traçamos um objetivo final, a não ser o da renovação constante e enquanto tivermos saúde, é isso que continuaremos fazendo”.É a originalidade que se destaca. E estamos falando de dois artistas com muita. Nelson, que tinha um jeito único de tocar, usando o polegar e o indicador para “empurrar” as cordas do seu violão, e Fróes, com a sua necessidade artística de apresentar e fazer o novo.
“Quando me enfiei nessa enrascada, eu tinha duas premissas claras para mim: não iria nunca tratar a obra dele com demasiado respeito, sem tentar transformá-la e buscar novas nuances para o que ele havia feito, mas também não queria cair na atualização vazia de, por exemplo, montar um powertrio de rock e tocar suas canções nesse formato. Toda a desconstrução e experimentalismo que meu disco possa ter, já estão na voz e no violão do Nelson. Nada pode ser mais estranho e radical que o violão e a voz do Nelson. O que tentei fazer, e modestamente acho que consegui, foi traduzir esse estranhamento para os dias de hoje, para a linguagem que tenho desenvolvido no meu trabalho autoral. Nesse sentido, me sinto muito realizado com o tributo que fiz a ele. Mas tenho consciência de que nada, nem ninguém será tão radical quanto o próprio Nelson Cavaquinho”, acrescenta Romulo.
Mas o cantor não esquece em seu novo álbum de quando, no início de sua carreira, era considerado por muitos críticos como herdeiro da tradição sambista e faz, sim, um senhor disco de samba. Mas transforma tudo isso em uma provocação auditiva. Impossível ficar impassível com a inquietude causada depois da audição do álbum.A vida de Nelson Cavaquinho tem muito de guitarras, ruídos e efeitos, com seus altos e baixos, amor pela vida boêmia. E Fróes soube trazer muito bem esse sentimento para dentro do conceito do disco.O disco recebeu o auxílio luxuoso das participações especiais de Dona Inah, Ná Ozzetti, Velha Guarda musical da Nenê de Vila Matilde, Criolo, de seus companheiros de longa data e do Passo Torto (Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral). Com ainda Thiago França, Guilherme Held, Wellington Moreira “Pimpa”, Juliana Perdigão e um time de competentes e criativos músicos, o obra se completa ao colocar esses “meninos” para sambar nesse novo terreiro.O álbum pode ser comprado pelo site http://www.sescsp.org.br/livraria
Cultura e outras coisas
Rafael Mendonça
Jornalista, editor do site O Beltrano, editor da extinta revista ‘Graffiti 76% quadrinhos’, editor do Baderna Notícias e cuidador da própria vida.