O amor e a loucura de Calvino e Fellini


Por André Nigri

O barão Cosme Chuvasco de Rondó está trepado no alto de um freixo com o olhar metido em um extenso prado. O freixo é uma árvore oleácea da mesma família da oliveira, e era sagrada para os celtas. Portanto, seus longos galhos e sua densa folhagem carregam algo de simbólico.

Calvino escreve:

“Todos os dias (o barão) estava no freixo observando o prado como se nele pudesse ler alguma coisa que havia muito tempo o consumia por dentro; a própria ideia da distância, da insaciedade, da espera que pode prolongar-se para além da vida.”

Estamos mais ou menos na metade do romance O Barão nas Árvores do escritor italiano Italo Calvino (1923-1985). Trata-se do livro de ficção mais popular do autor, lançado em meados da década de cinquenta e alguns anos depois entesourado, junto a O Visconde Partido ao Meio e a O Cavaleiro Inexistente, na trilogia Os Nossos Antepassados.

De repente, nosso herói vê uma mulher montada em um cavalo, uma jovem de uma beleza luminosa que lhe comunica algo distante, uma cor, um gesto, um olhar, repousado na infância e que agora volta a despertar.

Calvino nos leva soberbamente com sua linguagem de joalheiro fino, jamais besuntada de artifícios supérfluos, desse sentimento vago e indistinto que vislumbra uma reminiscência para sua materialização.

Então nos diz, era ela, a menina vista aos doze anos no balanço, no primeiro dia que passou nas árvores! Essa moça tem um nome fantástico: Sofonisba Viola Violante de Rodamargem!

Quando revê esse amor primordial, o barão é tomado por uma espécie de febre. Tamanha é sua excitação que ele tem ganas de gritar para que ela erga os olhos até o freixo. No entanto, “da garganta só lhe escapou o pio da narceja…”

Deixemos por enquanto Cosme com seu grito sufocado de paixão e passemos à cena do filme Amarcord, na qual Teo, o tio de Titta, aparece entre as ramagens de um olmo a trinta metros do chão olhando uma interminável planície. Lá do alto, ele começa a gritar “voglio una donnaaaa!” (quero uma mulher).

O “zio” Teo é uma criação da imaginação do cineasta italiano Frederico Fellini (1920-1993) para seu filme de lembranças adolescentes rodado em 1973. Teo é irmão do pai de Titta, o alter ego do diretor. O personagem de Ciccio Ingrassia aparece numa sequência de pouco mais de dez minutos. Dez minutos inesquecíveis. Não sabemos coisa alguma a seu respeito, como ficou louco, quando foi internado. Acompanhamos apenas a família de Titta, seu sobrinho, que aparece na porta do manicômio onde Teo é mantido internado, embarca-o numa carroça e o transporta para um almoço no campo. Ele carrega nos bolsos do paletó um monte de pedras, é fascinado por elas. Da grimpa daquela frondosa árvore, ele as atira na cabeça dos que tentam arrancá-lo de lá enquanto continua emitindo seu apelo que ecoa na planície.

O grito aberto de Teo e o grito sufocado de Cosme são um único grito, um grito primal. Calvino e Fellini eram fascinados pelas mulheres. Não conheço nenhum outro cineasta tão seduzido pelas múltiplas formas da beleza feminina, seu profundo mistério e arrebatador poder de sedução quanto Fellini. Ele as filmou de todas as maneiras e era conhecida sua incansável busca por um rosto de mulher. Em uma entrevista, declarou que o momento mais prazeroso do processo de realização de um filme eram as sessões de seleção de elenco. Em Amarcord, há pelo menos três dessas personagens femininas apaixonantes: a dona da tabacaria, Volpina e Gradisca. Mesmo assim, é à mulher ausente que Fellini reclama. Talvez essa mulher ausente seja nossa outra metade como queria Platão, ou a Eva bíblica, ou até a Virgem Maria… de qualquer modo, ela é inatingível.

Mas há uma diferença fundamental na maneira de olhar essa metade perdida em Fellini e em Calvino. Zio Teo não é tratado como um pobre coitado, e muito menos é um revoltado que perdeu o juízo sob o rolo compressor da ordem burguesa. Toda a cena em que ele aparece, assim como em todo o filme, o olhar sob o qual o gênio de Fellini o reveste é de uma cômica nostalgia.

Nostalgia. Detenho-me nessa palavra e aqui prefiro-a à nossa singular saudade. Todos conhecemos esse sentimento, mas em Calvino ele não é somente triste. Nada disso. Lembremos: o barão Cosme, antes de reencontrar o amor deixado na infância, viveu inúmeras aventuras eróticas, quase todas muito engraçadas. Um exemplo: o Carvalho das Cinco Peruas. Uma tarde, um tal Zé, comerciante de passas de uva, contou ter visto cinco lindas mulheres nuas, cada uma sentada em um galho de um imenso carvalho, com as sombrinhas abertas porque o sol era muito forte, e, no meio delas, o barão Cosme lia em voz alta versos latinos de Ovídio ou de Lucrécio.

Só consigo associar essa imagem às mulheres de Fellini, aquelas mulheres que se sabem muito superiores aos homens e que nos olham com aquele misto de alguma condescendência e olímpica altivez.

No final do capítulo vinte e um de O Barão nas Árvores, Cosme e Viola fazem amor pela primeira vez. Nos braços dele, ela “tornara-se doce”, ela era de “ouro e mel”. Então:

“Conheceram-se. Ele a conheceu e a si próprio, pois na verdade jamais soubera quem fosse. E ela o conheceu e a si própria, pois, mesmo já se conhecendo, nunca pudera se reconhecer assim.”

O amor é enlouquecedor. No capítulo seguinte, um se entrega ao outro em suas alcovas aéreas, suspensos no ar, como dois passarinhos ou um casal de borboletas. E Cosme, que era um jovem culto e plurilíngue, começa a declamar aos ventos versos nos quais mistura várias línguas, frases sem pé nem cabeça, frases de um doido. Mas, como todos sabemos, as coisas não duram e, um dia, depois de eles brigarem muito, Viola vai embora para sempre com um oficial inglês.

“Cosme ficou vagabundeando pelos bosques durante muito tempo, chorando, maltrapilho, recusando-se a comer. Chorava alto, como os recém-nascidos, e os pássaros que antigamente fugiam em bandos ao se aproximarem daquele infalível caçador, agora ficavam junto dele, nos cumes das árvores…”

A maravilhosa novela de Calvino tem como narrador o irmão do barão, um sujeito convencional, incapaz de desvencilhar-se dos compromissos de sua classe, fraco de imaginação e que se contenta com narrar os episódios de seu “fratello rampante”. Esse narrador somos nós. Nós, os normais, os que não sonham, ou se sonham, acordam arfantes e correm para se vestir e continuar a enfadonha rotina de suas vidas regradas e presas a horários.

Notem a impressão causada ao “narrador-irmão-normal” quando ele revê o barão Chuvasco de Rondó após sua desdita amorosa:

“Quando meu irmão voltou a aparecer em Penúmbria, estava mudado. Nem eu podia mais ter ilusões, desta vez Cosme tinha mesmo ficado louco.”

Louco? Louco como o tio Teo de Fellini!

Um dia, Frederico fechou-se em seu estúdio e colocou uma folha de cartolina branca sobre a prancheta. Ele tinha lido incontáveis vezes o livro de Calvino. Começou então a bosquejar o seu barão nas árvores. Ele o desenhou suspenso no ar, em meio à folhagem de uma enorme árvore. Suspenso. Não apoiado, nem sentado. Era assim que Fellini começou a criá-lo. E assim nasceu o tio Teo, um tio que primeiro existiu somente em sua mente.

Mas ele não podia viver uma aventura idêntica à do herói de Calvino. Cosme passou pela Terra no final do século 18, em uma outra época, a mesma de Rousseau e de Voltaire, e sobretudo a mesma de Diderot, autor de Jacques e Seu Amo, ou seja, na juventude dos tempos modernos.

Fellini queria lembrar de sua infância nos anos trinta do século vinte em uma pequena cidade da costa italiana. Seu país vivia então sob o fascismo, mas também vivia sob o fascínio do cinema americano e de suas estrelas, dos bailes de salão ao som de rumbas e boleros, dos grandes transatlânticos, das corridas de carro. Portanto, o suspenso tio Teo é de outra época, embora ele gravite na grimpa de olmos como Cosme. E, como o barão, ele sonha. Sonha e grita louco de amor.

O personagem de Amarcord, ficamos sabendo graças ao seu pai, tem quarenta e dois anos, e ignoramos se um dia ele conheceu o amor físico, mas isso não tem a menor importância. Também insistem até hoje na castidade de Kafka, na sua santidade, no seu martírio e em outra montanha de bobagens e cretinices a seu respeito. Por que citei Kafka? Porque Fellini sonhava em filmar O Desparecido ou Amérika, um dos três romances inacabados do escritor de Praga. Na verdade, ele sonhava em filmar uma personagem daquele romance, a opulenta Brunelda. Podemos acompanhar os testes do diretor à procura dessa soberba mulher no filme Entrevista, de 1988.

Bom, mas não nos percamos. Fellini criou Teo, o louco que grita “voglio una donna!!” em cima da grande árvore. No final, não é uma beldade que o faz descer daquele gigantesco olmo. Lembrem-se, os tempos agora são outros. Uma freira anã, um símbolo da repressão e da supressão da vida, da feiura e da castração, é quem sobe a escada e docilmente Teo a acompanha até o carro que o levará de volta ao manicômio.

Aqui abro um parêntese: a imagem de um ser uivante que perde seu amor incide sobre a arte e é antropomorfizada na natureza selvagem. Pegue-se o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. Quando descobre o corpo sem vida do jagunço Diadorim, Riobaldo, entre o benzer e o soluçar – como anotou Silviano Santiago em seu magnífico ensaio sobre a obra-prima de Rosa -, emite uivos. E como estamos no universo do sertão, Rosa escreve aludindo a quem habita e coabita nas árvores: “O pássaro que se separa do outro, vai voando adeus o tempo todo.”

Nos tempos de Fellini não se pode mais subir nas árvores e gritar sobre o amor. E cada vez menos se pode fazer isso no nosso eficiente e ultra tecnológico século vinte e um. Por quê? Para Coetzee e Bellow, esses dois grandes escritores e pródigos inventores de personagens, o instinto de preservação da classe média, sua sede insaciável de realidade – sintomas dessa enfermidade é o empobrecedor aviso “baseado em fatos reais” como um atestado de qualidade para um filme, uma peça ou um livro – é uma permanente ameaça à imaginação. Por isso os hospícios, ou outro eufemismo que costuma-se dar a essas prisões onde se metem os “desajustados”, os barões Chuvasco e os Teos, os que gritam o amor perdido, estão sempre cheios. Cheios de sonhos enjaulados.

SERVIÇO:

Una Donna con Tre Seni- Le Donne nel Cinema di Frederico, de Gabriel Bensimhom – traduzido do original inglês A Woman with Three Breasts

O Barão nas Árvores, de Italo Calvino, tradução de Nilson Moulin

Amarcord, de Frederico Fellini (1973)

Literatura

André Nigri

Jornalista, crítico literário e leitor compulsivo.