O dia que Iansã resolveu aparecer
Como foi o 8 de março em BH, dia internacional de luta das mulheres
Por Silvana Mascagna

Acordei e fui preparar meu cappuccino italiano, como faço todas as manhãs, mas resolvi que ele teria raspas de chocolate no fundo. Paco, já sentadinho, me esperava estrategicamente, como faz todas as manhãs, ao lado do lugar onde sento. Pêpa ainda estava no quarto. Pensei se para ela é tão difícil quanto para nós, mulheres. E, sim, é! Quando Lili a resgatou da rua há cerca de 15 dias, ela estava no cio, talvez seu primeiro e, tão logo o veterinário descobriu isso, me disse: Precisamos castrá-la logo porque a possibilidade de ela estar grávida é imensa. Estava. Pêpa, ainda filhote, fez um aborto. Mas ainda que seja mais difícil para uma cadela viver na rua do que para os cães, Pêpa não sofrerá na vida maiores consequências por ser fêmea.
É a cultura que cria a desigualdade, pensei.
Estava às voltas com esses pensamentos quando recebi um telefonema do meu editor, que me deu “bom dia” (não ”parabéns”, ufa!) e me perguntou se eu iria para a rua ontem. Diante da afirmativa, me sugeriu que eu escrevesse algo, pessoal, sobre a experiência do encontro com minhas companheiras de luta e luto. Aceitei.
Faltando uns 15 minutos para as 16 horas fui para a Praça da Liberdade, onde seria o ato. Cheguei sozinha e fiquei perambulando por lá. Vi mulheres negras (muitas), brancas (muitas) e trans (poucas). Vi adolescentes, moças e senhoras. De cabelos lisos e cacheados, castanhos, louros, pretos, ruivos, azuis, rosas. Estavam lá as mulheres das Ocupações Tina Martins e Marião, as moças da União da Juventude Socialista, o pessoal do Movimento de Mulheres Olga Benário.
Todas por um propósito: mostrar que o 8 de Março é muito mais de luta do que de homenagens. As faixas não deixavam dúvidas: “Contra a cultura do estupro, resistimos”; “Nenhum direito a menos”; “Não queremos presentes, queremos direitos”; “Função igual, salário igual”, “Não à reforma da Previdência”… O “Fora, Temer”, que embalou o Carnaval de BH, ali era onipresente. Estava nos selinhos nas roupas, na pele, nos adereços de cabeça, nas faixas e nas palavras de ordem.

A jovem Marcella Eduarda Januária de Carvalho, 18, a Madu, falou sobre sua prisão arbitrária, durante o Carnaval. Com megafone na mão, contou como foi acusada de ter participado de um ataque que incendiou um ônibus em Belo Horizonte. Ela ficou detida durante quatro dias e hoje usa uma tornozeleira. Madu não pode ficar para a marcha. Teria que estar em casa antes das 18h, por ordem judicial. Fizemos uma “vaquinha” para que ela pudesse pegar um Uber.
Depois, seguimos em direção a João Pinheiro. Uma nuvem escura no céu mostrava que teríamos companhia. Mas, antes que ela chegasse, Cristal fez uma performance, com música de Elza Soares e, em seguida, um discurso, para lembrar das trans assassinadas recentemente. Deu tempo para a amiga feminista Adriana Ferreira, com o filhote, Leon, nas costas, distribuir lencinhos lilás para a mulherada. Deu tempo para eu encontrar minhas amigas Jana e Jacke e descer com elas e todas as outras quase a João Pinheiro inteira, cantando “Eu sou mulher, sou feminista, e não aceito esse governo golpista”; “Ai, ai, ai, empurra o Temer que ele cai; “Se cuida, se cuida, seu machista, a América Latina vai ser toda feminista”, “A nossa luta é todo dia, somos mulheres e não mercadoria”; “Machistas, racistas, não passarão”…
E então ela chegou, com muita água e raios, como é o seu estilo. Era Iansã, nos abençoando! Oyá!
Gritamos para uma Afonso Pena, lotada de carros e de gente nas marquises: “Pode chover, pode molhar, contra o machismo não me canso de lutar”.
E a marcha seguiu e encontrou outra marcha. Com mulheres encharcadas, animadas, cantando e dançando. O destino era o viaduto Santa Tereza.
Ali, eu as abandonei… Não havia uma só parte do meu corpo que não estivesse ensopada de água! Estava difícil de enxergar com os meus óculos embaçados! A cidade estava parada! Andei durante duas horas em busca de um táxi!
Quando cheguei em casa, cansada, vi que minhas roupas molhadas eram um reflexo da minha alma lavada!
Oyá, Iansã!