O SHOW TEM DE CONTINUAR

Mostrando o poderoso texto que faz fama, a lenda Lauro Lisboa manda essa potente contribuição a O BELTRANO sobre a Mostra Cantautores 


Por Lauro Lisboa

Publicado em 07/11/2018

7ª Mostra Cantautores BH – 03/11/18 ©Pablo Bernardo

Artistas trabalham muito. Alguns deles têm sentido a necessidade de reafirmar o que se sabe dos bastidores, mas que para os zumbis reacionários parece apenas diversão de “vagabundos”. Quem veio a Belo Horizonte  para a 7ª Mostra Cantautores tem tido experiências incríveis com artistas de peso como Angela Ro Ro, Zélia Duncan, Cátia de França e Jards Macalé. Artistas de verdade, desses que ralam muito e construíram um valioso patrimônio musical e hoje não são apenas referências, mas se tornaram baluartes da resistência nestes novos tempos de trevas em que a cultura se vê jogada num monstruoso fosso de abandono por parte de quem deveria cuidar melhor dela.

7ª Mostra Cantautores BH – 03/11/18 ©Pablo Bernardo

Nesse cenário de tristeza, a Mostra Cantautores, pilotada pelos heróicos Jennifer Souza e Luiz Gabriel Lopes, dois representativos trabalhadores da música mineira – que já vinha ganhando importância e corpo a cada edição num ambiente de preservação da música autoral -, cresce como forte simbolismo dessa resistência. 

Desde sábado, cada show e cada cantautor teve seu peso na forma demonstrar força com mensagens diretas ou indiretas por meio de discursos improvisados, frases de afeto dirigidas ao público e até mesmo (ou principalmente) pelas letras das canções, que agora ganham outra conotação.

7ª Mostra Cantautores BH – 03/11/18 ©Pablo Bernardo

No sábado, Zélia, que mandou seu recado contra “os imorais” e outras aberrações humanas que não suportam a existência da arte, de artistas e humanistas em geral, saiu do palco aos prantos, depois de tranquilizar do jeito que foi possível os fãs que lotaram o Cine Theatro Brasil: “O artista nunca vai abandonar vocês”. Eles que mais do que nós têm de estar  sempre bem para entreter a platéia e aliviar as tensões. E nós temos no mínimo igual responsabilidade de não soltar a mão deles. 

Por isso e muito mais, pelo amor que já tenho por ela como artista e pessoa, fiz questão de ir ao camarim (como fiz depois com Cátia de França e Macalé) para agradecer por tudo de maravilhoso que eles nos têm dado, para abraçar e ser abraçado fisicamente por eles – que já nos abraçaram abstratamente com sua poesia e a de seus imprescindíveis parceiros -, para compartilharmos boas vibrações, tão necessárias para limpar o ar contaminado pelo furor da ignorância, porque definitivamente vale o clichê: só a arte nos salva e nos salvará dessas trevas.

7ª Mostra Cantautores BH – 03/11/18 ©Pablo Bernardo

“Dói em mim sentir que a luz que guia o meu dia, não te guia, não / Quem dera pudesse a dor que entristece fazer compreender / Os fracos de alma sem paz e sem calma ajudasse a ver / Que a vida é bela só nos resta viver.” Com essa e outras, Angela Ro Ro arrancou lágrimas e risos com seu jeito desbocado de mulher corajosa. Começou o show (antológico) usando apetrechos vermelhos (lenço, nariz de palhaço, leque) com toques de ironia, como Macalé que no domingo entrou em cena com um enorme cachecol vermelho e uma camiseta da mesma cor com a clássica e transgressora arte de Helio Oiticica com a frase “seja marginal, seja herói”, parte de um manisfesto de 1968 contra a ditadura militar. 

Mostra Cantautores – 04/11/18 ©Pablo Bernardo

Além de clássicos arrebatadores como “Movimento dos Barcos” e “Vapor Barato”, Macalé fugiu um pouco do padrão da Mostra – como Zélia que também cantou Rita Lee – interpretando canções não autorais, como “Canalha” (Walter Franco) e “Só Assumo Só” (Luiz Melodia) e outras que têm tudo a ver com ele. Apropriações mais do que justas, como as de Zélia. Ao final convidou (e foi atendido como sempre) a platéia a sair do teatro cantando “Juízo Final” (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito), porque “isso faz um bem danado”. 

E muita gente seguiu pelo saguão e até na rua cantando (e chorando de emoção): “O sol há de brilhar mais uma vez / A luz há de chegar aos corações / Do mal será queimada a semente / O amor será eterno novamente”. Esse verso sempre me intrigou, pois se era eterno, o amor não deveria ter acabado. Mas essa palavra que caiu em desgraça, desgastada pelo uso indevido, foi o lema de todos os pedidos e demonstrações de afeto nessas noites e tardes.

7ª Mostra Cantautores BH – 03/11/18 ©Pablo Bernardo

Thiakov e Thiago Corrêa, compositores locais que abriram para Angela e Zélia, respectivamente, e igualmente fazendo valer a arte e o amor como bandeiras políticas, também foram contemplados publicamente por parte delas. Zélia até antecipou a entrada para abraçar Thiago em cena, como forma de retribuir as gentilezas durante a apresentação dele e nos bastidores. O músico depois emprestou a ela seu violão quando um dos instrumentos da cantora teve um pequeno problema. Dizendo assim parece banal, mas gestos de delicadeza como esses têm grande influência positiva na atual situação de desconsolo que todos que amamos arte vivemos. 

7ª Mostra Cantautores BH – 03/11/18 ©Pablo Bernardo

 

Mostra Cantautores – 04/11/18 ©Pablo Bernardo

Cátia mostrou quase tudo de seu belo álbum “Hóspede da Natureza”, de 2016, e viajou no bico do poeta-passarinho Manoel de Barros. Faltaram alguns clássicos, mas “Ensacado” (“Por isso muito cuidado, queime de febre e não dobre, não quebre nunca, não morra, não corra atrás do passado… Segure a barra, requente o caldo da sopa fria, vá cultivando a semente até que um dia arrebente o saco cheio de sol”) entrou no sarau de segunda-feira, uma atração à parte para quem acompanha a Mostra.

Mostra Cantautores – 06/11/18 ©Pablo Bernardo
Mostra Cantautores – 06/11/18 ©Pablo Bernardo

Além da intimidade que o formato desses shows permite trazer ao público (a gente se sente sempre como se estivesse recebendo esses artistas adoráveis na sala de casa), as histórias que revelam do que motivou certas canções é outra característica diferencial e estimulante da Mostra. O sarau fora da programação não é aberto grande ao público, mas nós, do pequeno, tivemos o privilégio de vivenciar momentos antológicos, na Birosca de Santa Tereza, como a sequência de Sérgio Pererê, Luiz Gabriel Lopes, Makely Ka, Cátia de França e Thiago Braz. Haja coração!

Mostra Cantautores – 04/11/18 ©Pablo Bernardo

Foram mesmo torrentes de emoções, posso dizer sem preocupação crítica. Com eles e com outras/os artistas incríveis, como Jennifer Souza, Leo Assunção, Julia Branco, Bia Nogueira, Josi Lopes (que arrasou num dueto com Zélia em “Pagu”, no sábado, e foi um dos lances mais abaladores do sarau), François Muleka (que cantou lindamente na terça no teatro de câmara dentro da Mostra e também me impressionou deveras), Rafa Castro (atração de quarta no mesmo palco), Marcelo Veronez, Vitor Santana, Luan Nobat, Teo Nicácio, Gustavito, Peri Pane (que lançou recentemente o terceiro volume de “Canções Velhas para Embrulhar Peixes”), Adriano Goyatá e outros que me fogem o nome agora. É impressionante a quantidade de gente bacana fazendo música boa! E como é bom ser abraçado por elas/eles.

7ª Mostra Cantautores BH – 03/11/18 ©Pablo Bernardo

É por isso que nos últimos anos largo tudo que estou fazendo para vir de São Paulo para essa bendita Mostra Cantautores, que nesta edição arrasou na programação colocando muito mais mulheres compositoras. Além das citadas, ainda se apresentou Juliana Perdigão (na terça), e virão a angolana Aline Frazão (quarta), Nath Rodrigues (quinta) e a fabulosa Joyce Moreno (sábado). Na sexta participo de uma roda de bate-papo com Joyce, a maior compositora brasileira em atividade e desde sempre. Muita honra. E para encerrar, o não menos maravilhoso João Bosco, com sua voz e seu violão inconfundíveis, vem nos lembrar que “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”.