Previdência ficará para a ressaca eleitoral


Por Flávio de Castro

Foto: Paulo Pinto/Agência PT

A apreciação da reforma da Previdência Social, que se dá por Proposta de Emenda à Constituição (PEC), tem tudo para acontecer apenas nos últimos meses do ano, possivelmente em novembro. Lá na frente, quem tiver sido reeleito no Congresso já terá recuperado a confiança, e quem tiver perdido agirá como se não devesse nada aos eleitores. Pela natureza de nosso Congresso e das mudanças em questão, as votações não ocorrerão neste primeiro semestre.

A intervenção federal militar no Rio de Janeiro, anunciada na quarta-feira passada, demonstra que o próprio governo opta por engavetar a proposição, ao menos temporariamente. A Carta determina no parágrafo 1º do Artigo 60 que, enquanto vigorar essa situação especial entre entes da federação, amparada por decreto, ela não pode ser emendada. Sabendo não ter votos suficientes para aprová-la, Temer e companhia aproveitaram para trocar uma medida estritamente impopular por outra, de puro marketing, pela qual buscam sair do atoleiro da aversão pública. Prova de que o presidente sem voto ainda alimenta algum anelo de reeleição.

De toda forma, a primeira lei universal das categorias políticas formais estabelece que um político tem basicamente dois objetivos: o primeiro é se eleger, e o segundo é, estando em mandato, se reeleger. A campanha de sindicatos, centrais e entidades da classe trabalhadora está forte contra a reforma e expondo os nomes e os rostos dos deputados que se assumem favoráveis às alterações no sistema federal de aposentadorias, pensões e seguridade social. Os cartazes estão nas ruas das grandes cidades do Brasil inteiro, e o tom das entidades contrárias é de alarmismo. Antimarketing poderoso contra os parlamentares pró-reforma.

Metade de fevereiro foi-se. Uma PEC, por sua natureza, exige tramitação especial, com mais sessões para discussão e votação, além de maioria qualificada de dois terços nas duas Casas. Dessa forma, a PEC cobra um custo político muito alto – e com toda a razão, em nome da preservação da Constituição. Na hipótese mais otimista, seriam uns dois meses e meio de tramitação nos plenários da Câmara e do Senado e, se este alterar qualquer letra do texto aprovado por aquela, volta pra lá para nova votação.

Imaginemos junho batendo à porta. Em ano de eleições gerais, que tomarão as ruas e as casas logo depois da Copa, discutir uma medida tão naturalmente impopular na antevéspera de campanha é um risco tremendo. Além disso, sempre convém lembrar que a comissão especial que analisou a PEC da reforma rechaçou a tentativa de demonstração do governo de que a Previdência sofre de déficit estrutural bilionário.

O método de estimativa orçamentária que identifica déficit possui flagrante viés político: ele parte da premissa da necessidade de autossustentabilidade do sistema pelas contribuições de empregados e empregadores, e desconsidera a destinação de parte da receita de vários impostos e contribuições de atribuição federal, como estabelece a Carta Magna em seu Artigo 195. Segundo estudos de entidades como Auditoria Cidadã da Dívida e outras, se considerada a cesta tributária descrita na Constituição, a seguridade social brasileira é superavitária.

Se o risco eleitoral emperra a tramitação da PEC neste semestre, outro fator ajuda a empurrá-la para o fim do ano: sua natureza. A reforma tem um caráter privatizante, pois favorecerá a migração das economias do trabalhador, regulares e de longo prazo, para a previdência privada. A aposentadoria integral, pelo texto proposto, será praticamente impossível de ser obtida – a menos que se contribua por meio século ininterruptamente! Pelas projeções de rentabilidade e pela possibilidade de livre resgate do montante aplicado, o sistema bancário passará a ser bem mais atrativo do que é hoje. Não é por outro motivo que a reforma da Previdência pública, desde que esse governo tomou o Planalto, é vendida como ‘A reforma’, discurso que vem alugando espaços nobres no varejo da grande imprensa há mais de um ano.

O encolhimento do raio de ação governamental e a consequente ocupação desse espaço pelo mercado é um movimento que sintetiza a alma da gestão Temer e uma das fontes de patrocínio do golpe de 2016. É volumoso o rio de dinheiro a mais a ser administrado e multiplicado pelas corretoras privadas e suas tesourarias arrojadas à la Ponzi. Comprometer a reputação do sistema público como “cofre confiável” significa privatizar seus ativos.

E o que tem o calendário com essa natureza privatista da reforma? Hoje, o voto favorável à reforma de um deputado que visa única e exclusivamente à sua reeleição custa muito mais caro do custará em novembro, passada a ressaca eleitoral. Neste semestre pré-eleitoral, o parlamentar bota na mesa de negociação sua carreira política, cheia de riscos e necessidades; depois, com uns aliviados e outros com o botão do f*** ligado, serão comprados por muito menos, pois o medo da urna eletrônica já será passado. Depois de outubro, a opinião pública também estará farta de política, cansada da baixaria inata à campanha, e tenderá a baixar a guarda, cuidando só do próprio umbigo.

O governo Temer, menino de recados do mercado, que é razão pela qual existe e sobrevive, já mapeou os dois plenários e repassou para os agentes do lobby financeiro. Depois de outubro, as hienas irão sedentes aos gabinetes. Para os agentes financeiros, não fará qualquer diferença uma aprovação agora ou em novembro, mas para o parlamentar faz toda. E, até lá, a presença dessa pauta na imprensa serve apenas para mantê-la viva na esfera pública.

Nessa celeuma política e atuarial que envolve a ‘mãe das reformas’, há uma pitada de tragicomédia, como é usual no nosso caso. A bancada ruralista, com suas mais ou menos duas centenas de parlamentares, teria fechado questão em favor da proposta de Temer e Meirelles. A contrapartida seria o afrouxamento da legislação que limita a utilização de determinados agrotóxicos em quantidade e qualidade. Rapinagem pouca é bobagem!

Primeiro que o Brasil já é, dos grandes países, o mais irresponsável e leniente no uso de intensivos e pesticidas em lavouras, em vários casos, muito acima das recomendações da Organização Mundial de Saúde e da FAO. E, segundo, a liberação do veneno será ótima para o sistema previdenciário público, uma vez que a incidência de cânceres no aparelho digestivo da população tenderá a crescer exponencialmente.

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político