Samarco dois anos depois

O Beltrano visita o epicentro da tragédia de Mariana


Por José Antônio Bicalho

Distrito de Bento Rodrigues, Município de Mariana, Minas Gerais.
Foto: Rogério Alves/TV Senado

A primeira coisa que um visitante faz ao entrar na área da mineradora Samarco (empresa da Vale e BHP Billiton), em Mariana, é assistir a um vídeo com informações sobre segurança. Mas boa parte das regras de conduta está desatualiza e não é mais aplicável.

Todas as operações de produção da Samarco estão paradas há exatos dois anos, desde o rompimento da barragem do depósito de rejeitos de Fundão, em 5 de novembro de 2015. Dessa forma, não fazem mais sentido, por exemplo, as orientações sobre distância a ser mantida dos equipamentos em funcionamento ou risco de queda de materiais transportados suspensos.

As regras de circulação ainda são válidas, mas o trânsito atual de veículos não é sombra do que foi antes do acidente. A enorme frota de picapes cabine dupla e caminhões fora-de-estrada está parada na quase totalidade. Alguns poucos caminhões menores ainda circulam, apoiando trabalhos de manutenção.

A convite da Samarco, O Beltrano visitou, na semana passada, o epicentro da tragédia de Mariana, o maior desastre ambiental já ocorrido no país. A lama que desceu do depósito de Fundão, há dois anos, matou de imediato 19 pessoas e destruiu três vilas, sendo uma delas histórica.

O avanço da lama nos dias seguintes arrasou irreversivelmente as águas do rio Doce e seus ecossistemas, afetando a vida de milhares de ribeirinhos e dos moradores das grandes e pequenas cidades às suas margens. Nos meses seguintes, registrou-se uma epidemia de febre amarela com focos ao longo do rio, que biólogos atribuíram a mortandade de sapos e proliferação de mosquitos.

Distrito de Bento Rodrigues, Município de Mariana, Minas Gerais.
Foto: Rogério Alves/TV Senado

Obras

O motivo da visita era a apresentação in loco das estruturas de contenção da lama remanescente em Fundão, com obras praticamente concluídas. Mas foi também oportunidade para olhar o cenário de caos do ângulo privilegiado que se abre de dentro da empresa.

Visitamos a barragem rompida e o depósito de Germano, que é duas vezes maior que Fundão e também correu risco de se romper com o acidente. Os dois reservatórios de rejeitos são vizinhos e interligados por três diques que tiveram suas estruturas abaladas. Se Germano tivesse vindo abaixo, o desastre teria sido inimaginavelmente maior.

Visitamos ainda a barragem de Nova Santarém, construída para conter a lama que ainda desce de Fundão. E os dois diques para decantação e redução da turbidez das águas do córrego Santarém (que deságua no ribeirão Gualaxo, que por sua vez corre para o rio Doce). Do outro lado da lagoa formada pelo último dique pudemos ver as ruínas de Bento Rodrigues, onde a lama da Samarco chegou primeiro.

Deserto

Tudo dentro das instalações da Samarco é grandiosamente triste. Cruzar de van por sobre a areia esbranquiçada do depósito de Germano passa a impressão de estarmos num deserto de sal. Fazemos uma parada sobre os diques recuperados de Germano, de onde se tem uma visão panorâmica e desoladora de Fundão vazia.

É impressionante até onde o volume de rejeitos chegava naquela gigantesca bacia, que agora voltou a ser um vale. As marcas do rejeito que vazou estão nas encostas dos morros erodidos. Só se vê vida no topo dos morros. Nas encostas e fundo do vale, nem capim cresceu. Tudo é cor de ferrugem, resquício da lama que hoje gera nuvens de poeira quando bate o vento.

Nosso anfitrião, o engenheiro Eduardo Moreira, coordenador das obras nas barragens, começa a explicar o desafio técnico que foi a recuperação dos três diques de ligação entre Germano e Fundão. Uma obra de grandes dimensões, da qual ele fala com indisfarçável orgulho. Hoje, os diques estão à vista e recuperados. São enormes e, do nosso ponto de observação, os caminhões que trafegam em suas bases parecem formigas. Mas antes do acidente os diques ficavam escondidos, submersos pelo rejeito de Fundão, apenas com o topo visível.

Quando a lama desceu, a movimentação violenta dos materiais erodiu camadas das paredes dos diques. Milagrosamente, eles aguentaram firmes, mas era preciso recuperá-los com urgência. Germano, um depósito exaurido e fora de atividade desde 2012, guarda hoje 130 milhões de metros cúbicos de rejeitos, enquanto Fundão mantinha 55 milhões de metros cúbicos. E nos primeiros meses pós-acidente a possibilidade de que os diques se rompessem era real.

Segundo Moreira, a insegurança era tamanha que no início dos trabalhos de recuperação foram usadas carregadeiras não tripuladas, controladas à distância. As marcas das erosões nas paredes, que vimos por fotos, não existem mais. Hoje, as estruturas estão recuperadas e reforçadas e, segundo Eduardo Moreira, não apresentam mais risco.

Diques entre os depósitos de Fundão e Germano que correram risco de ruir – Foto José Antônio Bicalho

Barragem

Seguimos para a barragem de água de Nova Santarém, recém-concluída, que se encontra pouco à frente de Fundão. A água vem do córrego Santarém, que corta todo o vale onde ficava o antigo depósito. O objetivo da barragem é bloquear o carreamento do rejeito que ainda resta dentro de Fundão. A estrutura dá a impressão de superdimencionada para um córrego tão pequeno, mas Moreira explica que chuvas fortes ainda poderão provocar grandes desprendimentos de materiais das encostas dos morros.

Dos 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos que havia em Fundão, algo próximo a 13 milhões de metros cúbicos ainda estão dentro da área do antigo depósito. Outros sete milhões de metros cúbicos pararam na antiga barragem de água de Santarém, que foi completamente assoreada. Somados, são 18 milhões de metros cúbicos de rejeito que ainda estão dentro da Samarco, e é para contê-los que a barragem Nova Santarém foi projetada. Um volume que não se compara – é razoável lembrar – aos 35 milhões de metros cúbicos de rejeito que se espalharam ao longo da bacia do rio Doce.

Distrito de Bento Rodrigues, Município de Mariana, Minas Gerais.
Foto: Rogério Alves/TV Senado

Bento Rodrigues

Abaixo da barragem, visitamos ainda os dois diques de pedras que formam lagoas de decantação. O objetivo é reduzir a turbidez da água do córrego Santarém antes do seu encontro com o ribeirão Gualaxo, que é tributário do rio Doce.

E, aí, veio a polêmica: o último dique, o S4, foi construído fora da área da Samarco, em Bento Rodrigues. Onde hoje está o lago havia a estrada de chegada ao vilarejo e alguns sítios. Moreira explica que o dique foi projetado de forma que as águas do reservatório não inundassem a parte principal da cidade, onde estão as ruínas das casas e da igreja de São Bento. Mesmo assim, os atingidos foram críticos ao projeto que colocou parte da cidade, que já estava debaixo de lama, também debaixo de água.

Além de O Beltrano, a Samarco convidou para esta visita um grupo de três repórteres de A Sirene, o jornal fundado pelos ex-moradores das vilas destruídas. Um deles, Genival Pascoal, ex-morador de Bento, questionou duramente o engenheiro sobre a necessidade da obra.

Pudemos ver que o dique, uma barreira de pedras empilhadas, cumpre de fato a função para qual foi projetado. A água que o ultrapassa segue translucida para o ribeirão Gualaxo. Mas o que seria menos danoso? Permitir o lento carreamento dos sedimentos que cobrem Bento Rodrigues pelo córrego ou submergir parte da vila? Para Genival, a formação do lago sobre Bento Rodrigues é inaceitável. Com problemas na fala, ele se comunica por escrito. “Aqui estão memórias afetivas”, escreveu em seu caderno, apontou a frase para Moreira e depois para o lago.

Distrito de Bento Rodrigues, Município de Mariana, Minas Gerais.
Foto: Rogério Alves/TV Senado

Vila fantasma

Chegar a Bento Rodrigues foi um choque, para mim e para alguns outros desavisados. Pelo roteiro que nos foi apresentado, visitaríamos apenas obras de recuperação de estruturas internas da Samarco. Mas o dique S4, como disse, foi construído em Bento Rodrigues. A visão da cidade nos chegou de surpresa e, mesmo à distância, do outro lado do lago, é de fato chocante.

O mato que cresceu suaviza a imagem da cidade tomada pela lama que vemos nas fotos tiradas imediatamente após o acidente. Mesmo assim, a presença da vila fantasma é angustiante e criou grandes silêncios nos intervalos das explicações técnicas do engenheiro Moreira.

Bento Rodrigues era uma linda vila histórica, erguida no século XVIII, durante a mesma corrida do ouro que fez florescer as vizinhas Mariana e Ouro Preto. A igreja de São Bento, padroeiro da vila, construída no início dos setecentos e uma das mais antigas de Minas, foi completamente destruída. Outra igreja histórica da vila, a das Mercês, é um dos únicos imoveis do local que ficaram intactos, por estar no ponto mais alto do distrito.

Existia um plano já bem estruturado, e para o qual esperava-se uma firme contribuição da Samarco, de consolidação de um corredor turístico integrado por Bento Rodrigues e os também históricos distritos de Santa Rita Durão e Camargos.

Conheci a região há cerca de 20 anos, quando fiz uma das primeiras reportagens sobre a Estrada Real, ainda como repórter da antiga Gazeta Mercantil. Nos anos seguintes, voltei mais duas vezes como turista. Naquela época, não havia hotéis nem pensões nas vilas, e negociávamos quartos para aluguel nas casas dos moradores.

O caderno do Genival Pascoal – Foto: José Antônio Bicalho

Reza e choro

Retorno ao escritório da Samarco conversando com Genival, o repórter de A Sirene. Ele segue escrevendo freneticamente em seu caderno, apontando pela janela da van para lugares destruídos e informando o que existia antes. Mostra onde era a Praça de São Bento, a igreja, a lagoa onde pescava tilápias e carpas, a mata de onde tirava lenha. E disse como todos os moradores viviam comunitariamente, trocando verduras e criações de seus quintais.

Também informa que, para não perderem esta ligação comunitária, os moradores voltam todos os fins de semana a Bento Rodrigues. “O que fazem lá?”, pergunto. “Canta, conta histórias e chora”, escreveu ele em seu caderno.