A terra, a mulher e o amor no sertão mineiro
Dez dias de caminhada no universo de Guimarães Rosa
Por Agatha Azevedo

Me lembro que, quando ouvi o Almir Paraka, idealizador d’O Caminho do Sertão, contar do sonho de fazer uma caminhada no mais árido sertão, revivendo as andanças de Riobaldo no livro “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, tudo parecia impossível. Mas, em 2017, o projeto chegou à sua quarta edição. Entre os dias 7 e 17 de julho, percorremos 176 quilômetros, da Vila de Sagarana, em Arinos, à Chapada Gaúcha, no Noroeste de Minas Gerais.
Este relato traz um pouco dessa aventura, sem a pretensão de descrever inteiramente o que é imergir nestas terras. Faço, aqui, um esforço de síntese das histórias de luta e das sensações que perpassaram o processo. Antes de mais nada, ele é um convite à caminhada.
Terra
Sertão é terra de caliandra, de gente que, como a flor do sertão, resiste ao ambiente inóspito com delicadeza e beleza. Nos rostos, marcas de sol, castigo e alento. E a saúde de quem não consome produtos industrializados e planta o próprio alimento. Gente que planta, benze e luta para manter tradições.
Um dia antes de iniciar a nossa caminhada, logo na chegada a Sagarana, fui à casa de ‘seu’ Zezinho. Do alto de seus sessenta e poucos anos, ele anda de bicicleta, cuida da horta na escola regional e acalma corações aflitos com sua calma e bondade. Com um sorriso no rosto, ele nos recebeu de bom grado em pleno sábado.
Meu corpo e minha alma já vinham perturbados há um tempo. Foi assim que eu, de religiosidade duvidosa, me vi ao lado deste senhor, de olhos fechados, recebendo bênçãos silenciosas e sentindo o peso da vida fora daquelas terras se afastando de mim.
Depois de nos ‘rezar’, seu Zezinho nos falou da tradição de benzer as pessoas, que vem se perdendo por conta do fanatismo religioso e da falta de interesse dos jovens pela cultura tradicional. Ele explicou que, sendo sobrinho de benzeiro, sempre se interessou pelo dom. Mas, como manda a tradição, não se pode ensinar a reza para outra pessoa.
De tanto insistir, ele conseguiu do tio a promessa de que, quando sua hora chegasse, o livro com todas as rezas seria deixado para a família. O caderno, porém, terminou sendo queimado pela prima de seu Zezinho, que se converteu e, convencida pela fé divergente, ateou fogo nas palavras de seu pai.
A frase que se repetia na minha cabeça era ‘respeitar os tempos’. No sertão, os tempos são outros. A hora de comer é diferente, acordamos bem mais cedo, o ritmo da vida passa em outra frequência e o próprio caminhar é específico, questão que eu só descobri após o primeiro dia, quando vi que eu teria que diminuir o passo para seguir avançando. Como na vida, o caminhar é retroceder um pouco para avançar e chegar mais longe.
Vila de Sagarana é ponto de partida dos caminhantes do projeto. Com cerca de 500 habitantes, há ritual e mito em cada grão daquele lugar. Nele se fez política pública, reforma agrária, divisão de terras. A região lida com diversos problemas ocasionados pela distribuição das terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que desconsiderou as características culturais e agrícolas das famílias assentadas.
Na nossa caminhada, estivemos em diversos assentamentos camponeses que passaram por processo de grilagem. Ouvimos relatos sobre como, nessas terras, ser agricultor familiar e produzir longe do agronegócio e de suas cercas e tecnologias maléficas à saúde e ao meio ambiente é praticamente um crime.
O sertão é sol. E a chuva, visitante ocasional. Andamos com tecnologia e infraestrutura mas, muitas vezes, a única coisa que queríamos era água.
No sertão estão os donos do agronegócio que fizeram do município de Buritis o terceiro maior exportador de soja do estado. Justo nesta região onde, segundo os fazendeiros e grileiros de terra, ‘ninguém queria morar porque não tem água’. E, hoje, se veem hectares e mais hectares de monocultura. O que é ter terra se falta água para o plantio?
Camila, moradora da região e filha de Jorge, militante histórico, conta que a água é interrompida diretamente das nascentes, que por razões extra-legais (o famoso senso de ética elástico) estão nas terras privadas dos grandes produtores. O conflito é gerado porque essa água não chega ao pequeno produtor. Mas lutar contra os poderosos locais é perigoso. O pai de Camila está preso desde março de 2016 por ter ousado travar essa batalha.
Por outro lado, em toda casa que passamos fomos recebidos com fartura de comida e carne, tão difíceis na região. A hospitalidade genuína e sinal de alegria para com quem chega. Cada prato preparado tinha sabor de atenção e dedicação. Os caminhantes sempre tiveram o melhor que a comunidade poderia oferecer. Há amor e força nesses pequenos gestos.
Há quem diga, num estereótipo errôneo, que não dá para plantar no sertão. Provavelmente, os mesmos que grilaram o primeiro hectare de terra, descumprindo a legislação brasileira e atentando contra a função social que a terra deveria ter. Na contramão da exploração dos recursos naturais pelo capital, está a agrofloresta da família de Tico, em Buraquinhos, onde há geração de alimento e renda sem degradação ambiental.
O cerrado é a maior formação savânica da América do Sul, ocupa mais de 20% do Brasil e é um bioma quase tão grande quanto a Amazônia. No Parque Nacional Serra das Araras, vimos diversos frutos, árvores e rastros de animais que só existem neste bioma. Segundo o Bergs, um dos guias do Caminho, “a gente só cuida daquilo que a gente conhece”.
Atravessamos o rio Urucuia no domingo, o primeiro dia de caminhada. Naquele momento, meu corpo inteiro se conectava com a mãe natureza. Nos pés sujos de terra, muitos esparadrapos se misturavam às bolhas e à vontade de imergir naquelas águas e ser batizada de sertão. Entendi, naquele momento, o valor da terra e da água pr’aquela gente.

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A mulher
Esta edição do Caminho foi mais de 50% feminina. Durante todo o percurso, pude conviver com mulheres muito guerreiras, e valorizo cada trecho de suas vidas que me foi confidenciado. Desde a alegria de ouvir que a mãe da Denise conquistou o sonho da casa própria, até o simples compartilhar de momentos com a Mari, sempre tão generosa e cuidadosa.
Dentre as caminhantes, conheci a Cida, filha de camponeses. Ela teve coragem de ir para a cidade grande militar pelo campo e lutar nos sindicatos para que o modo de vida da agricultura familiar permanecesse. Vinda de uma família grande, com 8 filhos, sendo 5 meninas, a felicidade era o maior bem que eles mantinham.
Os pais de Cida viviam aos mandos e desmandos do fazendeiro dono da propriedade, que impedia ela e os irmãos de estudarem. Em Buraquinhos, ao olhar a casa de adobe da família de Tico, ela voltou no tempo e me permitiu ouvir sobre sua vida. O local onde ela viveu com a família na infância foi queimado na frente de todos, por jagunços, e ninguém pôde fazer nada.
Ainda em Sagarana, conheci a história de Helena, cozinheira responsável pela alimentação dos Caminhantes. Orgulhosa, ela me contou sobre a vinda para Sagarana para buscar uma vida melhor e mais tranquila, e a alegria de ter uma atribuição tão grande. Para ela, este trabalho é emancipador e importante, não só pela geração de renda, mas pela oportunidade de se fazer grande e não ouvir de um homem que ela não pode ou não consegue liderar.
Na maioria dos pousos pelos quais passamos, a chefe do lar era uma senhorinha forte e guerreira, que nos recebia com bom alimento. Uma das mais impressionantes foi Dona Geralda. Oralidade, mistério e enfrentamento se mesclam no modo curiosamente bem humorado com o qual ela descreve as vezes que escapou da morte. Dona Geralda chegou a Arinos fugindo da miséria na década de 60. O que a senhorinha de cabelos grisalhos buscava era paz. Porém, os militares da ditadura interromperam este sonho logo no início de sua vida na região.
Sob a acusação de vínculo com o comunismo, a Fazenda Menino, onde ela morava com os filhos, vivia cercada de militares. Por diversas vezes, ela enfrentou metralhadoras carregadas. Tentaram assassiná-la, mas a bala nunca a alcançou. Para entender o que foi sua vida e o Brasil daquela época, só conhecendo-a pessoalmente. As portas de sua casa estão sempre abertas para “os meninos do sertão”, como ela chama os andarilhos que passam pela região. De tudo que levo das mulheres que compartilharam estes dez dias comigo, ressalto a força e o amor pela vida.
O amor
Me abri inteira e esperei que o Caminho me atravessasse. Respeitar os tempos, me encontrar e me reencantar comigo mesma e com a vida. Descobrir a beleza e os desafios de ser eu. Sentir as provações e ver a empatia nascer. Sentir materializar o amor e os sentimentos mais sutis e doces nos gestos cotidianos. Abrir os braços para experiências, antes tão distantes, e me permitir. Tudo isso, e mais uma dose do intangível, indescritível, não concreto, poético. Na minha bagagem, eu queria levar tudo o que o Caminho quisesse e tivesse a generosidade de me dar.
Eu senti o amor de diversas formas durante a caminhada. Na confiança dos que me deixaram cuidar de bolhas nos pés, e na dedicação com a qual cuidaram das minhas. Na solidariedade de carregarem a minha mochila quando eu não dava mais conta e na cumplicidade de ir caminhando junto até o final do trajeto do dia. Amor no gesto de emprestar o tênis, a toalha, a pasta de dente, o esparadrapo, o algodão, a pomada, o tempo, os ouvidos. Amor ao sentir o frio cessar de noite e me sentir coberta. Amor sincero, destes adormecidos na vida da cidade, destes que não se compram.
Aceitei o convite, deixei o sertão entrar. E é por isso que este relato se faz verdadeiro e em primeira pessoa. Ele é nada mais que uma história de amor num sem-fim de sonhos e desejos. Apreendi tonalidades de vida, verde, verso e sonho que não cabem na palavra. Vi a faceta mais pura do amor. Nunca recebi tanto, nunca senti tanta esperança vinda do outro que acaba de me conhecer. Espero ter podido dar-me inteira também, como recebi.
Recebi o alimento das mãos de quem luta para que o agronegócio não siga avançando. Fui cuidada por quem caminha sol a sol no cerrado. Fui abençoada por doses imensuráveis de generosidade. Tudo o que eu recebia, tentava repassar. Foi assim que me vi ajudante do seu Bergs, boa ouvinte, e vi cartões de memória, sapatos, cantis, meias e remédios espalhados por aí. Ouvi e, abrindo minhas convicções para a intervenção do outro, vi que a vereda linda, na verdade, estava muito vazia. Vi também que o que há de mais belo na tradição oral e na vida sertaneja está ameaçado. Vi tanta coisa que não cabe no relato.
Voltei decidida a amar mais, e nunca tive tanta certeza do que queria da minha vida pessoal. De tempos em tempos, quando meu foco se perder diante das injustiças do mundo e da brutalidade da selva de asfalto, pretendo entrar em rota de fuga e ir molhar meus pés na vereda. Às vezes, é só olhar para o lado, que o amor e a segurança que buscamos estão diante dos nossos olhos. Como diria Rosa, o que a vida quer da gente é coragem.
A partir de certo momento, me despi de equipamentos, coberturas, narrativas e da crença de que eu poderia registrar na totalidade o que foi a travessia do Caminho do Sertão. No primeiro dia, me permiti um banho no Rio Urucuia, onde tudo o que importava era sentir o batismo daquelas águas, sem registro. No último dia, fiz o impensável. Subi ao Vão dos Buracos de noite, sem câmera, despretensiosa, tomada pela vontade de compartilhar o momento.
Durante o Caminho, entendi que não registrar é também respeitar os tempos, e que para receber relatos é preciso coragem e confiança. Na pausa, vi que comunicar é ato de corpo inteiro. Que transborda. Aceitei as pequenas perdas de registro. Tempo, um presente que o Sertão me deu sem pedir nada em troca.
Agatha Azevedo é jornalista formada pela UFMG, fotógrafa e co-fundadora da rede Jornalistas Livres, na qual pertence à equipe nacional de editores e coordena o núcleo mineiro do projeto.