Um médico na Favela da Maré
O dia a dia de trabalho na área mais conflagrada do país
Por Henrique Peixoto Netto e Ana Cristina D’Ângelo*
Aviso de guerra pelo app
Rio de Janeiro. Meu despertador toca às 6h15. Pego o celular para conferir no grupo dos funcionários como está o clima. Bom dia, bom dia, e começamos a perguntar e a saber como está a área.
Os agentes comunitários de saúde são moradores da Maré e eles nos avisam se tem fogos de artifício no céu (meio de comunicação do tráfico), tiros ou alguma operação policial. Dependendo da situação a gente nem sai de casa, fica esperando para ver se melhora.
O problema é que nem sempre essas guerras começam de manhã cedinho. Pode ser ao longo do dia. Muitas vezes estamos dentro da unidade, trabalhando, e começa o tiroteio. Fechamos a porta e ficamos todos no corredor: médicos, enfermeiros e pacientes. Ouvindo os tiros e a gritaria.
Já vi gente chorando, gente descontrolada, com medo pela própria vida e pela dos filhos que estão nas escolas e creches da região. É uma situação bem tensa. Minha pressão costuma subir nos dias mais agitados.
No front e na divisa
Me perguntam sempre se tenho medo. É arriscado, concordo. Mas também é arriscado andar pelo Rio de Janeiro, pelas ruas e vias expressas.
A unidade médica fica na divisa entre duas comunidades da Maré: a Nova Holanda, controlada pelo Comando Vermelho, e a Baixa do Sapateiro, dominada pelo Terceiro Comando.
Algumas vezes a briga é por motivos pueris. Certa vez, o bandido de um lado pegou o rádio de comunicação do bandido do outro lado. Começou a falar na freqüência da outra facção, xingando, dizendo que eram otários. Isso gerou uma guerra.
O articulador e o dono
Entre os funcionários, tem uma figura esdrúxula que é o articulador. É um cara que tem trânsito entre os bandidos porque é um ex-bandido, considerado na região. A ele cabe passar informações para os administradores das Clínicas de Saúde da Família sobre o que vai acontecer no panorama das facções criminosas.
Mas, quando falamos de Maré, estamos falando de um conjunto 13 favelas; uma área muito extensa e ninguém é capaz de saber tudo o que está acontecendo.
As favelas têm donos e isso é muito real. Só é estranho pra quem não mora lá. O dono é um déspota, determina o que se pode e o que não se pode fazer. E é um julgador também. Uma moradora foi se consultar na clínica com pressão alta, muito aflita. O sobrinho, que é viciado em crack, tinha cometido um roubo na favela. Os bandidos o levaram para que fosse julgado pelo dono da favela. Ela estava esperando a sentença. Por sorte, segundo ela, ele “só apanhou” e ficou de castigo em casa alguns dias.
A dor da gente não sai no jornal
A gente presencia situações de extrema violência. Mortes, prisões, vandalismo, agressões, uma série de coisas-limite e nada sai no jornal. Algumas vezes vi sangue escorrendo na rua e procurei. Comprei todos os jornais do Rio e não achei nada. Me fez lembrar a música do Chico ‘a dor da gente não sai no jornal’.
Os funcionários contam coisas como a polícia entrou, pegou um cordãozinho de ouro. Se se tem R$ 500 reais ou mais em casa, a polícia também confisca. Não são todos policiais, claro, mas ouvimos relatos de atrocidades.
O cenário
Apesar de ter água encanada, a comunidade da Nova Holanda é cortada por um valão. É um fio de água preta com lixo, esgoto, tudo o que se possa imaginar. Cadeira, sofá, bonecas, carrinhos de bebê, urubus, muitos urubus, e, claro, mosquitos. E os agentes comunitários têm que dar palestra falando sobre a dengue neste ambiente cheio de mosquitos. É constrangedor.
Doenças
A gravidez na adolescência é muito comum. E muitas vezes ela vem acompanhada de sífilis. Normalmente o parceiro não se trata por machismo ou medo. A menina descobre que está doente fazendo o pré-natal. E pra nós é difícil trazer os meninos para o tratamento ou falar da importância do uso de camisinha. Muitos bebês nascem com sífilis.
A tuberculose também é prevalente e a maioria abandona o tratamento. Porque há uma melhora significativa nos primeiros dois meses e, então, a pessoa desaparece. E volta depois de mais de ano com uma tuberculose multiresistente.
Uma geração e o futuro
Andando pela favela você vê crianças com fuzis, armas pesadas, isso impacta muito. Cada vez mais as armas são de grosso calibre. Tem fuzis de todos os tamanhos, cores, com mira telescópica. Uma coisa surpreendente.
Às vezes fico sem esperança sobre mudanças. Como estas armas chegam ali? Tem um batalhão da polícia dentro da favela e, no ano passado, foi o segundo onde se registrou o maior número de desvios de armas. E não acontece nada.
Nas duas comunidades vemos muitos jovens sem ter o que fazer, andando pelas ruas. Mais meninos que meninas. A evasão escolar é maior entre os meninos. Sem perspectivas, com 13 ou 14 anos, mal sabem ler e escrever. Daí o bandido dá um real para ele pegar um cigarro no bar. Daí pede outra coisa. E, de um momento para outro, já está envolvido.
O que dá pra fazer
Acho que fazemos pouco, mas o que se faz é muito importante. Com uma tecnologia leve – um estetoscópio, uma balança, um aparelho de pressão, seria possível fazer a diferença e resolver 80% das necessidades da saúde das pessoas na atenção primária. Com tesão pelo trabalho, você consegue fazer coisas. Mas o resultado, hoje, ainda está muito aquém do que eles precisam por direito, por cidadania.
Nas visitas domiciliares, aos pacientes que não conseguem se locomover, você pode conversar, dedicar mais tempo às pessoas. Gostaria de receitar remédios homeopáticos em alguns casos, mas não têm na farmácia do SUS. Mesmo assim, prescrevo homeopatia para quem pode gastar um pouquinho.
Uma conversa com um garoto motivado a entrar pro tráfico pode ser importante e ele dá um passo atrás. Se você oferece uma alternativa, uma conversa, estimula o sonho da pessoa..
Mortes e posto fechado
Apenas nos três primeiros meses de 2017, 14 operações de forças de segurança pública e sete dias de conflitos entre grupos armados deixaram 13 pessoas mortas nas favelas que formam o Complexo da Maré. Durante todo o ano de 2016, foram 17 mortos e 16 feridos em 33 incursões da polícia. Até o momento, as crianças e jovens da Maré ficaram 11 dias sem aula e os moradores já contabilizam 17 dias de postos de saúde fechados, inclusive no dia da campanha de vacinação.
Para chamar atenção da sociedade e exigir uma solução do poder público para a escalada da violência na Maré, foi realizada, no último dia 24, a Marcha Contra a Violência na Maré. O evento é organizado pelo Fórum “Basta de Violência! Outra Maré é Possível”.
O Fórum também contesta a falta de transparência, por parte do Governo do Estado, sobre os motivos da atuação violenta nas favelas do Rio, em uma estratégia que se repete há anos, e que eles avaliam não apresentar resultados efetivos. De acordo com o Fórum, durante os quinze meses em que as Forças Armadas ocuparam o conjunto de favelas da Maré, foram gastos R$ 1,6 milhões por dia, totalizando R$ 600 milhões durante todo o período de ocupação. O órgão alega que, em contrapartida, entre 2009 e 2015 (sete anos), o investimento da Prefeitura em programas sociais na região foi de R$ 303,63 milhões – metade do investimento realizado com a Força de Pacificação em um ano e três meses.
Ainda no governo de Sérgio Cabral, o plano era levar o programa de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) para o Complexo da Maré. Mas o tamanho do território e as diferentes facções criminosas que lá atuam dificultaram a aplicação dessa estratégia.
O Estado do Rio de Janeiro já recebeu 38 UPPs. A polícia pacificadora conta com um efetivo atual de 9.543 policiais. As UPPs em operação abrangem 264 territórios. Dados da secretaria de segurança pública mostram que a criminalidade diminuiu a partir de 2008, quando foi instalada a primeira UPP, na comunidade Santa Marta. Mas, desde 2014, diversas regiões têm sofrido com a volta da violência.
* Henrique Peixoto Netto é médico há 38 anos. Há seis anos trabalha na clínica de saúde da família da Nova Holanda (Complexo da Maré). Foi secretário executivo da ONG Médicos Solidários e gerente de projetos do Médicos Sem Fronteiras.
Ana Cristina D’Ângelo é jornalista mineira radicada no Rio