Um réquiem para a Europa - Joseph Roth testemunha a agonia de um império
Por André Nigri
A lenta agonia do império Austro-Húngaro coincidiu com o florescimento da arte do romance como poucas vezes se observou na história do gênero. Em um arco de tempo muito curto, três grandes obras de ficção surgiram tendo o mesmo cenário como pano de fundo. Os três escritos em alemão: a trilogia Os Sonâmbulos, de Hermann Broch; O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil; e A Marcha de Radetzky, de Joseph Roth. Nos três, os personagens se confrontam com a decadência de um mundo em agonia. Esse mundo, no seu auge, constituía-se em mais de 50 milhões de pessoas vivendo em um vasto território na Europa cujo centro era Viena e seu soberano, o kaiser Francisco José.
Esse mundo veio abaixo em 1914, com a explosão da Primeira Grande Guerra. Ao fim de quatro anos, ele não era mais reconhecível, seus valores pareciam tão remotos como os da Grécia de Sócrates e Platão.
Roth, Musil e Broch pertenceram a uma geração de intelectuais e artistas de fala alemã que testemunhou de perto as fases de desmoronamento da ordem europeia entre o final do século 19 e setembro de 1939: a crise refletida nas vanguardas artísticas, a guerra de 1914-1918, a erupção das revoluções e dos nacionalismos, o caos instalado pelos desgovernos do pós-guerra e a chegada do nazismo ao poder na Alemanha.
Os três se viram obrigados ao exílio e foram necessários muitos anos para que suas obras fossem recolhidas dos escombros e devidamente reconhecidas como contribuições cintilantes de espíritos inquietos e geniais.
Dos três, Joseph Roth talvez tenha sido o último a se valer desse resgaste – isso é mais certo em língua portuguesa em razão da demora de uma tradução à altura de sua obra-prima. Além disso, Roth nasceu nos confins dos domínios dos Habsburgos, às margens do império. Império que ele defendeu como um súdito devoto.
Joseph Roth nasceu em 1894 em uma família de judeus assimilados em uma cidade de maioria judaica no território imperial da Galícia. Foi educado em alemão, ingressou na faculdade de Viena em 1914, e serviu durante dois anos no front. Tornou-se em seguida jornalista e um escritor de êxito. Seu primeiro grande sucesso literário foi Jó – Romance de um Homem Simples, de 1930. O protagonista é um pobre judeu que abandona um filho aleijado para viver na América. Muito em função do final feliz da história – o filho torna-se um músico internacionalmente conhecido e resgata o pai de um cortiço em Nova York – a história tornou-se a mais popular de Roth e foi adaptada por Hollywood despida de seus elementos judaicos. Ao ser questionado sobre o desfecho pouco verossímil, Roth alegou tê-lo escrito bêbado.
Dois anos depois, ele publicou A Marcha de Radetzky, uma história dividida em três partes sobre três gerações de novos nobres no reinado de Francisco José.
Como o próprio Roth, o primeiro, Trotta, nasceu numa pequena cidade na periferia do império onde se falava esloveno. Por um golpe do destino, ele salvou a vida do jovem imperador Francisco José em uma campanha militar, a de Solferino, na Itália. Tornou-se por isso um nobre e começou sua dinastia. Seu filho tinha o posto de comissário distrital e amava o império com devoção e, por causa disso, faz de seu filho único um oficial da cavalaria. Mas, para o neto do herói de Solferino, a Áustria-Hungria é um cenário destituído de sentido, vivendo apenas de seus símbolos e lentamente caminhando para o fim.
Roth, a exemplo de outros romancistas de sua época, criticava esse vazio e a dificuldade de Viena de enxergar as rachaduras do sistema. O ovo da serpente era o nacionalismo e o comunismo, respostas mais concretas à crise social advinda da revolução industrial e diante das quais o gabinete de Francisco José fazia vista grossa, alimentando um sistema de votos de representação insuficiente, esmagando as aspirações nacionalistas, e provocando um grande ressentimento, cujo ápice foi o atentado ao herdeiro do império em 1914.
Para judeus assimilados como Roth, o esfacelamento da monarquia e o surgimento de estados nacionais representavam um grave problema. Com suas leis de tolerância e acesso à educação, muitos judeus podiam aspirar a uma carreira científica, artística ou na imprensa. Roth chegou a ser um dos principais nomes do mais importante jornal liberal alemão, o Frankfurter Zeitung. Em 1914, portanto, judeus como ele perderam não apenas a possibilidade de ascensão social, como também a pátria.
Por isso o tom de um longo réquiem acompanha as mais de 300 páginas de A Marcha de Radestzky. Mas não há qualquer complacência com os defeitos das engrenagens do império. A desagregação está em toda a parte. A primeira vez em que se ouve a marcha militar do título, em uma praça, ela está coberta de emoção e solenidade cívica; na vez seguinte, ela é ouvida em um bordel frequentado por oficiais.
À maneira de um Egon Schiele, Roth associa a liquefação dos valores à volúpia feminina. As poucas personagens que cruzam a vida do cada dia mais embriagado e dissipado tenente Trotta, o neto do herói do kaiser, são corruptoras, sedutoras, ligadas à desonra e à morte.
Roth é considerado um romancista de forma convencional, parece que ele pouco se interessava pelos movimentos do modernismo em prosa, mas em vários trechos de A Marcha… é possível entrever a languidez doentia tão cara aos expressionistas.
“Naquele tempo”, Roth escreve, “vivia-se de lembranças assim como hoje se vive da capacidade de esquecer, depressa e enfaticamente”. Não somente esquecer. Como não mais há reconhecimento, o último daquela pequena linhagem não quer também obedecer: “Pela primeira vez em sua vida, o tenente Trotta voltava-se contra as leis militares que governavam sua vida”.
Um dos elementos que liga todo esse belo romance é um quadro, uma pintura a óleo, feito por um amigo do segundo Trotta do velho de Solferino. Essa imagem, como um Dorian Gray às avessas, paira como um fantasma na mente do neto desiludido e cada vez mais refém do álcool e do jogo. Mas trata-se de uma evasão sem rebeldia. O tenente Trotta não aspira a liberdade, pois não saberia o que fazer com ela. Desde a infância ele estava acostumado a obedecer. Nos anos de juventude, Roth flertou com o comunismo, mas logo viu-se engajado numa quixotesca campanha de restauração da monarquia na Áustria.
A guerra nem surpreende o tenente Trotta. Ele parte para as trincheiras sem vontade alguma de servir à sua pátria – pouco tempo antes ele planejara abandonar a carreira militar, para grande desgosto do pai.
Dos três personagens da família Trotta, é o comissário distrital o mais bem-sucedido. A cada capítulo ele fica mais parecido com Francisco José, seu sistema de valores é inabalável, ele mantém-se fiel à memória do pai, à pátria, ao imperador, aos ritos e liturgias do sistema, lembrando em vários aspectos o oficial Pasenow do romance de Hermann Broch em sua impassibilidade e defesa da honra.
A Marcha de Radetzky é, entre as peças de ficção de Roth, seu livro mais pensado e melhor elaborado. Depois de sua publicação, Roth escreveu contos e curtas novelas. Foi um autor de sucesso na Europa e nos Estados Unidos, mas vivia às voltas com dívidas. Sua vida pessoal também foi marcada por perdas. Na década de 30, sua mulher sofreu uma série de colapsos nervosos e foi internada na Alemanha. Roth não conseguiu retirá-la dos manicômios quando os nazistas tomaram o poder e ela acabou sendo uma das primeiras vítimas de experiências de eutanásia de Hitler.
Em 1930, exilado e vivendo em um quarto de hotel em Paris e sempre adiando o exílio nos Estados Unidos, o alcoolismo de Roth se agravou e ele recusou qualquer tipo de tratamento. Finalmente, em 1939, um amigo dramaturgo se matou em Nova York. Agora ele bebe da hora em que se levanta até desacordar. Depois de uma convulsão no bar do hotel e, após mais de três dias de delirium tremens, morreu em um hospital na capital francesa. Tinha 44 anos.
A Marcha de Radetzky de Joseph Roth, tradução de Luís S. Kraus, editora Mundaréu, 2014.
Literatura
André Nigri
Jornalista, crítico literário e leitor compulsivo.